quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/23/2005 10:52:48 AM

LULU E A SUA MÃE

Pintura de Vermeer


Fabrício Carpinejar





Lulu não escuta a chaleira chiando. Lulu não escuta o sussurro. Lulu não escuta a grama encurvando antes da chuva. O vento nos quadros. Os chinelos chegando. Lulu não escuta o soluço. Lulu não escuta as vozes ao telefone. Lulu pede para repetir. Lulu não escuta a música. A escada. Os galhos cerzindo casacos de frutas. Lulu não escuta o barulho do estômago. O batimento cardíaco. O assobio. Lulu não escuta o girar da chave. A maçaneta dobrando. As venezianas batendo. Lulu não escuta a fumaça do café. Lulu não escuta os passos. A campainha. O lençol no varal. Cinqüenta por cento no ouvido, quarenta no outro. Lulu não escuta. Lulu não escuta os latidos. A algazarra do recreio. O despertador. Lulu não escuta o relógio. Lulu não escuta as aves tremendo de frio lá fora. As roupas do seu armário. Lulu não escuta o som abafado do verão. Lulu não escuta as pulseiras. Lulu não escuta as batidas na madeira. O apontador descarnando a cor. A lista de chamada. O apito da escola. A sirene do bombeiro. Lulu não escuta os insetos, o pincel das asas. As moscas na janela. Lulu não escuta a mangueira ligada. Os brindes dos copos. Lulu não escuta as ondas, o elevador, o chuvisco da torneira. Lulu não escuta o telhado. As goteiras. Os aviões ao longe. Lulu não escuta o escuro. O giro do corpo. Os saltos flamencos. O portão. Lulu não escuta o zíper do vestido, o borbulhar do azeite. O leite derramado na vasilha. Lulu não escuta as gavetas arrastadas. O livro caindo. A vassoura recolhendo as folhas. Lulu não escuta o choro miúdo. O gemido. O arrepio da lã. Lulu não escuta a caneta. O jasmim do papel. O celofane do presente. Lulu não escuta o vaso quebrando. O prato posto na mesa. As pálpebras. Lulu não escuta os óculos no chão. As pedras rolando. Os talheres. A tosse do corredor. Lulu não escuta os remos na espuma. O barco amarrado no cais. As correias da bicicleta. Lulu não escuta o que é baixo, o que é discreto, o que é suave, não escuta a vida formigando. Sua mãe passou a não escutar também, para não mostrar vantagem, para não mostrar superioridade, para domar o medo. Para entender o silêncio da filha feita de olhos enormes, ávidos, crespos. O verdadeiro amor renuncia. O amor escolhe estar junto, não importa como. Lulu e sua mãe se escutam.

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