quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/18/2005 10:06:13 AM

DIÁRIO DE UM APAIXONADO III

Sintomas de um bem incurável


Pintura de Gustav Klimt


Fabrício Carpinejar





O apaixonado não consegue decidir nada. Recebe um cardápio e faz de conta que é uma televisão. Tudo está bom, tudo ele aprecia. Pode atravessar a pé uma cidade sem se importar com o cansaço ou dar voltas no mesmo bairro de carro e ainda elogiar as ruas.


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Ri mais do que fala. Aliás, o apaixonado emprega a risada para dizer sim.


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O garçom reconhece o apaixonado pelo braço ansioso de náufrago.


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O apaixonado se preocupa com a roupa de baixo. A mulher não usará time misto. Qualquer momento pode ser derradeiro.


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Quando está nervoso, o apaixonado segura as mãos da companhia para ganhar tempo com o tato.


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O apaixonado gosta de saber se a pessoa está sentindo o mesmo do que ele, mas precisa ser igualzinho. Fica horas no telefone acarreando os sintomas com o par. Descreve os efeitos da paixão em seu corpo com minúcias de uma doença a um médico.


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Acorda toda manhã de ressaca de algo que não bebeu. Como se sua vida fosse emprestada.


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O apaixonado é o último a acreditar que está apaixonado.


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Muda de idéia com facilidade. Fica seguro para se mostrar desesperado em seguida. Dois minutos é muito tempo para um apaixonado.


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O apaixonado não respeita sinais de trânsito. Dentro de si, um engarrafamento interminável. Passa o dia inteiro entre a primeira e a segunda marcha, entre a primeira e a segunda pessoa do singular.


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Joga xadrez com a música.


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Caminha envaidecido com marcas no corpo. Alisa as unhadas como esboços de uma tatuagem.


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O apaixonado desaparece do trabalho de repente, de modo discreto. E reaparece espalhafatoso.


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O celular do apaixonado está fora da área de cobertura ou desligado.


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O apaixonado é um guia completo dos bares da cidade.


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Esquece dos amigos e só volta a falar com eles depois da primeira crise.


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É possível montar um retrato falado do apaixonado a partir das pessoas que freqüentam rodoviárias e aeroportos. Ele está sempre partindo com as vestes do corpo.


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O apaixonado perde bem mais do que a cabeça.


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O apaixonado não aprendeu a mentir. Sua sorte: mente tão mal que se assemelha a uma verdade.

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