quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/17/2004 11:29:26 AM

PREFIXO 386

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar


O esquecimento é uma escola onde ninguém chora. Ninguém se lembra para chorar. Tão difícil ser inteiro estando presente. A ausência me deixa mais inteiro. O tempo poderia ser puro, se não dependêssemos dele. Eu sei, sei que, ao me pensar resolvido, perdi a alegria: a alegria do que poderia ser, que me insuflava na infância e me dava motivos para resistir ao horário de dormir. Há dias de passear pelo próprio nome. Entrei no lotação e reconheci o motorista. Fazia quadras que não pegava um táxi-lotação no bairro Petrópolis. Fui recordando devagar, como quem estica os braços ao acordar e se delicia com o formigamento. O motorista era o mesmo Edevaldo, conhecido como Da Paz, que dirigia há 27 anos aquele microônibus. Ele me viu pequeno, a chuva de sapatos na janela, saindo com a mãe, quando me perdi no centro, me viu crescer, ser adolescente e arruaceiro com os amigos, partir ao primeiro emprego, completar a faculdade, me deixou passar quando esqueci o dinheiro, me viu casar, ter filhos, separar, casar, ter filhos. Ele sabe mais de mim do que eu seria capaz de enterrar. Sua solidão me apavora ou minha solidão discordando da sua. A solidão é indecente, sempre indecente. Encho-me de ar na falta de água. Relvo-me por dentro, não diferenciando as estrelas, a grama do capim das estrelas. Não me revelo por dentro, mesmo indiciado por perguntas. O peixe é egoísta, não vira flor, sua carne branca não vira terra. Os jardins das barbatanas não viram asas. Precisava falar somente o indispensável com o motorista, o que não significava que o motorista não escutava o dispensável, as conversas cruzadas, o rádio das relações levemente sintonizado. Em nenhum momento das décadas da minha poltrona conversei com ele. O silêncio preparava a viagem, encaixe do osso. A cortina marrom como cabelos presos porque estavam sujos. Discreto, Da Paz consultava o relógio de pulso como um retrovisor. Mora em Canoas, vem cedo cumprir horários. O único dia que não trabalha é seu aniversário, em que se dedica a caminhar a esmo por Porto Alegre. Não tenho certeza se ouvi isso, o motor espirrava rinite. Tentei puxar uma conversa mais longa, um pouco pela culpa de ser o passageiro solitário de um sábado de manhãzinha. Não sei o motivo, perguntei qual foi seu dia mais feliz. Da Paz não tirando de si nada mais do que uma voz seca, disse: "Minha felicidade é muito igual". E se bastou.

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