quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/10/2004 09:54:42 PM

ORAÇÃO AOS QUE NÃO VOLTARAM DO FUNDO DE SI

Pintura de Iberê Camargo, da série "Ciclistas"


Fabrício Carpinejar





Por favor sempre às ordens volte sempre. Minha virtude é desatenta vaidade. A saber tudo, não sabia coisa alguma. A ser tudo, não fui coisa alguma. A chama é intransigente e não me deu tempo para arrumar meus pertences. Nem abracei a minha esposa, nem acenei aos filhos. Caminhei por onde não era, para descobri o que faltou fazer. Caminhei por onde não existia, para reparar onde não nasci. Não me pertenço. Queria me ter sem nada buscar. Queria me procurar sem me ameaçar. Escrevo porque não tenho nenhuma prova de que morri e tento me convencer de que ainda há vagas em meu corpo. Quando estou muito cansado, não durmo, porque fico cansado para dormir. Quando não estou tão cansado, descanso sem ritual e sem chinelos a esperar no portão. A insônia é um cansaço do cansaço. Não posso me renunciar, porque não tenho nada a perder. Não posso me desapegar, porque não tenho nada a ganhar. Na única vez em que pesquei, fisguei o anzol em minha perna. Eu me capturei e não me devolvi ao mar. O anzol puxou a carne como se fosse mar e o mar como se fosse carne. E toda pele ao sol é um grito. Minha maior amizade é com que desconheço, o que conheço de mim vira defeito. Não me atormenta ter sido assim, a esmo: por favor sempre às ordens volte sempre. Me atormenta que a imobilidade me tornou rígido e nego duas vezes para afirmar. Sou o filho que minha mulher teve com um estranho. O estranho sou eu. E a luz é suspeita para me devolver o rosto.

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