quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/16/2004 10:56:07 AM

SUBINDO


Fabrício Carpinejar


Tomo o elevador para encontrar o espelho. Não é evidente? A primeira coisa a se fazer, logo ao entrar, é olhar para o fundo da caixa de sapatos gigante e procurar o espelho. Há algo oculto em nossas intenções. Algo que se sabe não se lembrando. Algo que não se sabe de tanto saber. Esquecemos quando se anota o compromisso ou quando não preparamos um lembrete? Eu me esqueço no momento em que o escrevo. É como se já tivesse cumprido minha missão de recordar. Apresento o costume de não ter costumes. Não uso mais guarda-chuva, desde que extraviei o centésimo em um consultório. Guarda-chuva é um convite de sétimo dia plastificado. Minhas manias são defeitos que tentam ser virtudes. Uma delas é contar os números de pássaros na migração. Se é par significa sorte, se é ímpar, azar, alguém sobrará na história. Vou aos sebos quando estou triste. Vou a livrarias quando estou alegre. Os sebos são como roupa usada. E não existe nenhum melhor confidente do que as roupas. Elas conhecem os detalhes do que vivemos. A gente pode falar à vontade, não interrompem e ainda dormem no guarda-roupa sem medo do marido ou da esposa. Nada como uma calça sovada, um tênis que se adapta aos pés, para se sentir confortavelmente bonito. Ou confortavelmente feio. Mas sempre confortável. O livro usado tem o cheiro das mãos de quem leu. O cheiro da casa. O cheiro de rio dormindo. Um livro usado não é um livro, mas uma história. Não é uma história, mas uma pessoa. Ele olha comovido, tal cachorro que se enrola nas pernas e promete a lealdade da insônia. Um cachorro tem mais jeito de mendigo do que o gato. Eu cavo livros antigos para buscar anotações ao lado dos parágrafos, senhas indecifráveis e dedicatórias de autores que pensavam ter conquistado o leitor e que o perderam para as prateleiras. É uma segunda chance, como tudo na vida. Não conheço quem tenha acertado de primeira, seja na paixão, seja no trabalho. Amor à primeira vista acontece com quem não olhou direito. Os corpos se entendem até um dos dois mirar o teto e descobrir a discordância da alma. O problema dos relacionamentos é o teto. O teto separa. Muitos escritores casam com suas bibliotecas. Assim que morrem, as viúvas são vendidas a golpes baixos, sem direito a pensão. Essas bibliotecas ficam perdidas entre um canto e outro, esperando a própria esperança. Não gosto das mentiras nocivas, ambiciosas, falsas, que pretendem substituir as verdades. Gosto das mentiras honestas, verdadeiras, que nunca deixam de ser mentiras. Um livro usado é uma mentira que não mente, ele apenas quer um tempo para se inventar. Eu olho o espelho procurando o elevador.


(Crônica publicada na revista APM, da Associação Paulista de Medicina, agosto/04, nº 549)

Nenhum comentário:

Postar um comentário