quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/4/2005 10:42:32 AM

VISTA GROSSA, MALHA FINA

Pintura de Toulouse-Lautrec


Fabrício Carpinejar





Quem não alugou um apartamento e sofreu com a mudança? E quando se pensava conhecer a história do imóvel que está se deixando, cada centelha do lugar, cada porção de seu mistério, vem a vistoria com uma lista de defeitos que não se previa. A imobiliária trata de encontrar motivos para aumentar o custo da reforma antes de aceitar a chave de volta. O tapete apresenta manchas. Que manchas? Preparo-me para a briga, mas daí me lembro de uma garrafa de vinho que derrubei ao dançar com Ana (para atestar como danço bem!). O vidro está trincado. Confesso que nunca vi esse detalhe devido à proteção das cortinas e desconfio que é anterior ao ingresso no apartamento. Como saber? Na hora em que se entra na casa, não se dá bola para o relatório. Como fazer a exumação em pleno nascimento? Impossível pedir que se liste os danos no ingresso quando o que mais se quer é curtir a rede na varanda.


A imobiliária não esquece uma vírgula. A perfuração dos quadros lembra uma colmeia. Massa corrida em minha boca. A porta de correr ficou danificada. Negocio a troca. Havia um aspirador de pó no armário que faliu de asma. Sou obrigado a pagar o conserto de um dinossauro. Por que fui mexer no bicho? É tarde para remorso. Conta-se cinzeiros, ganchos, trincos, estantes, coisinhas mínimas e ordinárias, como riscos nos azulejos da cozinha, rachaduras de passarinhos, cabelos de lagartixas, problemas microscópicos incorporados como ofensas de uso. Em minutos, passo do viveiro ao antiquário. É como se fosse um desmemoriado recebendo de novo sua memória. Será que terei que repor o jacarandá que cortaram do outro lado da rua? Será que terei que restituir o sol que sumiu devagarinho pela construção ao lado de meu prédio? Será que terei que ressuscitar o gato do vizinho que deixou de miar de noite? Ou raspar o musgo, excitado com as chuvas, que surgiu nas paredes de fora? Não duvido.


Algo semelhante e destruidor é reprisado nas relações afetivas no momento de se mudar de uma vida para outra. No começo, a euforia não deixa ninguém reparar nas falhas. Pretende-se enxergar unicamente as virtudes. De modo nenhum os pequenos acidentes ou promessas de engano. É uma cegueira otimista. Assume-se a biografia do par com a calmaria entusiasmada. Há uma generosidade no contrato, tudo pode ser resolvido, consertado, arrumado.


No final, no instante de deixar o casamento, as pessoas ficam avarentas como a vistoria imobiliária. Nada pode ser deixado para amanhã. A ofensa é para agora. Ambos só identificam os defeitos. Só apontam os lapsos. Só reclamam da usura. Fecham-se para o que se aprendeu, o que se dedilhou, o que se amou. Apontam as infiltrações, os rumores das paredes, as torneiras indigentes. O longo cotidiano amoroso é esvaziado em itens, rasuras e grosserias. Culpam-se pela ausência do desejo, pela união arruinada. É uma cegueira pessimista. Agem como vândalos, saqueando a própria residência e transformando a partilha em roubo. Não são educados ao sair como foram ao entrar. Ela diz que ele ronca, come rápido, não transava bem, usava sua escova de dentes. Ele diz que ela é frígida, vive gastando, cozinha mal, está gorda. Não há como discernir as mentiras das verdades, já que a raiva mistura as duas para ser mais contundente. Os defeitos existiam desde o princípio, não se melhora ou piora com o relacionamento, se amadurece. Conciliar a entrada da casa com sua saída é aceitar o que as pessoas são, não o que deveriam ou poderiam ser. Faltou perceber que não se destrói a memória com as palavras. Muito menos a imaginação. Uma casa somente é preservada quando povoada.

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