quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/27/2004 10:05:36 AM

DESISTIR


Fabrício Carpinejar


Quando descubro que a pessoa com quem vivi mais de quinze anos traía, mentia e zombava, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o dente é uma dor de osso, não uma dor da pele, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o filho não escuta, finge e faz o contrário do que se pedia, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que alguém tão próximo morreu e não falei nada, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que a realidade não é a mesma coisa que a vida e uma pode faltar e outra sobrar, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o amor parou enquanto eu andava, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que tenho saudades mais do que não aconteceu do que aquilo que aconteceu, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que estou dispensado do emprego que julgava estável e definitivo, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que as tarefas, os compromissos, as reuniões me mantinham entretido porque não sei o que fazer sozinho, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que fiquei fora e não tive vida dentro, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que afastei todos que chegaram perto de meus segredos, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que sou o único da sala, de um tempo, de uma lista, a não ser convidado para a festa, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que os amigos trocaram de telefone há décadas e não sei para onde ir, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que deixei de puxar conversa e me alegrar longe do final de semana, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que meus pais não me amavam como queria e só amavam como podiam, que minha infância foi inventada para não sofrer com a verdade, que fui um filho do acidente, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que falam em minhas costas, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não posso perdoar o que desconheço, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que saber demais é saber menos, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que perdi minhas pernas, um braço, que perdi a visão ou a audição, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não sou igual nem aos outros muito menos ao que acreditei ser, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não acompanho meu raciocínio, que envelheci e não faço tudo sozinho, penso que não vou sobreviver. Mas a esperança é sempre mais teimosa do que eu. E justamente no final da desistência, um sol estranho, um cumprimento sem endereço, uma laranja úmida, uma foto desatenta, acredito que não é tarde e recomeço sem memória. Durmo e penso que foi um pesadelo, que exagerei, enlouqueci, que não tenho roupa para a tristeza, que fui duro e confundi a tolerância com a paciência. Saio debaixo do meu corpo. Tomo um banho mais longo na respiração. Provo o pão e o mel é sábio. Solto uma risada sem propósito, fico leve e caminho em telhas. Abro bem os olhos de cada palavra. Um dia antes de morrer, uma hora antes de morrer, alguns minutos antes de morrer e ainda não será tarde. E sobrevivo apesar de mim, depois de mim, antes de mim, em mim.

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