quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/10/2005 11:10:09 AM

INCORRIGÍVEL

Pintura de Matisse


Fabrício Carpinejar





Toda semente que jogava na terra, direto da boca, acreditava que germinaria. Não botava os grãos no lixo. Cuspia os caroços ao longe da grama e da terra, jurando que cresceriam naturalmente. Tangerinas, maçãs, pêras, laranjas. Arremessava com vigor e acompanha com simpatia os movimentos da desova nos dias seguintes. Se fosse assim, a casa de minha infância teria se transformado em bosque espesso e intransitável. Criança confia nas esperanças minúsculas mais do que nas esperanças maiúsculas. Ainda sou assim, afeiçoado ao engano como uma verdade. Sou fácil de ser passado para trás. E não sinto pena dessa minha crença absurda, dessa fé infantil, dessa ingenuidade inata. Melhor do que ser um pessimista que dedica sua vida a duvidar da vida. Melhor do que ser um cético que não muda de dor e não sente a súbita vontade de cantar no banho. Não sou daqueles que crê até que se prove o contrário. Creio em tudo mesmo quando já se provou o contrário. Surge uma esperança vã e ela toma conta de meus papéis e dos clipes. Uma palavra alegre que complementa o aceno e já penso que posso fazer amizade. Um assobio e me denuncio virando o pescoço. Na escola, se uma menina demonstrava atenção, eu começava a imaginar que poderíamos namorar. Ficava anos a fio deduzindo e sonhando aproximações que nunca aconteceram. Ou por timidez ou porque ela tinha sido apenas cordial comigo, assim como era com qualquer um, e exagerei nas conseqüências. Devo ser um especialista em relações platônicas ainda que não seja muito leitor de Platão. Continuo com esse dom infalível de completar os inícios das histórias. O pai de um amigo, advogado, uma vez por semana, abria e folheava os livros de sua biblioteca, para ventilar. Ele me dizia: "os livros pensam que estão sendo lidos e duram mais". Identifico-me com esses livros folheados. Sem uma esperança, o livro e homem se acabam e cortam a costura da lombada por dentro. Facilitam o ingresso aos cupins e traças. Podes me subtrair o amor, a paixão, o emprego, mas a esperança não. Minha esperança é intocável. Talvez tenha se fortalecido pela memória falha. Não sou rancoroso a ponto de planejar vinganças com esmero. Esqueço o que fiz de ruim comigo rapidamente. Tinha motivos de sobra para ser meu pior inimigo, porém me perdôo ao dormir. Nenhum trauma é maior do que o cansaço. Acordo serelepe e pronto para me conciliar com outras expectativas. Afinal, nunca é tarde para o bosque nascer de meus dentes.

Um comentário:

  1. Carpinejar, eu sou toda esse texto. Me sinto completamente descrita por ele.
    Aliás, me sinto sempre descrita por sua poesia, por sua sensibilidade, pelo seu tato com as palavras e com as pessoas. Você é maravilhoso.
    Você descreve o mundo, colorido.

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