QUEM FOI VIÚVO NUNCA MAIS SERÁ SOLTEIRO
Pintura de Chagall
Fabrício Carpinejar
Agora entendo a vontade de morrer depois que a esposa morre. Depois que parte a confidente de nossa boca. Pensava que era fraqueza, covardia ou egoísmo. Mas não. É o pavor de que os próximos dias apaguem a memória dos dias anteriores. Além de perder quem amamos, passamos a perder a memória de quem amamos. Ela morrerá de novo todo dia. Cada dia que passa crescerá a possibilidade de suplantar o dia em que se estava junto dela. Viver adiante é deixar de viver atrás. E a imagem dela real e carnal, presente e ubíqua, vai se rareando, enfraquecendo com as obrigações. De vez em quando, se travará o passo no meio da rua, para reconstituir um detalhe. Todo o pensamento se tornará decisivo. Não haverá concentração capaz de segurar as curvas da convivência. Desaparecem as sutilezas, o que não vi para ao menos lembrar, o que não ouvi para opinar. Doerá o que não aprendi a tempo de ensinar.
O que acontecia de forma natural e espontânea ficou impossível, o corpo próximo ao beijo ficou impossível, os telefonemas ao seu trabalho ficaram impossíveis. Percebe-se que se amava tanto que se esquecia de viver esse amor como deveria. A casa se transforma em um quarto de hotel, impessoal e distante. Os travesseiros serão lavados, o olor dela estará debaixo da carne como uma idéia. De que importa dormir, sem esbarrar nela, sem abraçar em concha, sem a respiração como um ar condicionado permanentemente ligado? De que importa despertar, sem ter ao menos alguém para contar o pesadelo?
Sua xícara de café com dois terços de leite e a cadeira da direita que ela se acostumava a sentar para se escorar na parede não têm mais sentido. Separar as roupas com antecedência para não acordá-la não tem mais sentido. Reclamar do saco de pães aberto pelo lado e de sua impaciência para tirar o nó não tem mais sentido. Conferir se a porta está chaveada não tem mais sentido. A reforma no telhado e a pintura das paredes não têm mais sentido. A jardineira não tem mais sentido. O gosto dos lábios não tem mais sentido. Abrir o fecho de um vestido não tem mais sentido. Encostar a porta com chinelos não tem mais sentido. Os livros que não lerei não têm mais sentido. Suas músicas, que dizia não gostar para provocá-la, não têm mais sentido. O teclado em que digitava com quatro dedos não tem mais sentido.
Aceita-se viver da sorte de ter sido amado um dia.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
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