quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/26/2004 07:40:42 AM

Jornal do Commercio, capa do caderno C, Recife (PE), 26/6/04:





LITERATURA


A POESIA COMO UM JOGO DE VIDA

Poeta gaúcho Fabrício Carpinejar viaja mais uma vez pela memória e usa estratégias lúdicas em Cinco Marias, seu novo livro de poemas


SCHNEIDER CARPEGGIANI


Em 31 de outubro de 2045, o jornal Diário do Sul publica a seguinte reportagem policial, que segue aqui resumida: a poeta Maria de Fátima Ossian, de 45 anos, enterra seu marido no pátio, o também escritor e médico Mauro Ossian, 70 anos. Com a chegada dos policiais, ela informa que ali não há nenhum corpo, apenas a biblioteca do morto, soterrada pela terra. Suas quatro filhas, que ao lado da mãe estão há 60 dias trancafiadas em casa, despertando a curiosidade de vizinhos, de passantes, confirmam a versão materna. Para elas, não há cadáver, só livros, montanhas de livros no túmulo improvisado.


A partir desse noticiário policial, o premiado poeta gaúcho Fabrício Carpinejar encerra seu novo livro de poemas, Cinco Marias. O título remete também a uma brincadeira de infância, em que o jogador lança uma pedra para o alto, recolhe uma das quatro, sem encostar nas outras. O jogo traz uma responsabilidade lúdica: ao tentar apanhar do alto cada uma das pedras, a criança se sente responsável pelo mundo. "É como se a vida dependesse do seu gesto. A poesia acontece com essa intensidade: salvar um dia de cada vez", disse Carpinejar em entrevista ao JC.


É exatamente como um jogo, em que as razões não precisam rimar com as regras, que o autor conduz os seus leitores por uma poesia que pode ou não querer viver em paralelo com uma realidade concreta - ou seja, o tal artigo de jornal.


"Os poemas não dependem de nenhum apoio, nenhuma bengala, os versos usam o corrimão do sopro para escorregar, não para se apoiar. A notícia no livro funciona para mostrar como a sociedade enxerga os personagens, enquanto os poemas são os pensamentos das Marias. A matéria do jornal que encerra a obra tenta classificar as pessoas, dizer de cara se prestam ou não, o que fizeram sem ao menos duvidar da vida. É sempre taxativa e superficial. Os versos permitem ao leitor conhecer a fundo o que as mulheres pensam dentro de seus desejos e vacilações. Defendo um vínculo do poema com a realidade", explicou o poeta.


A história das cinco Marias, a dos poemas, não a do noticiário, é a janela que Carpinejar escancara para o leitor, como em um reality show televisivo ou um vizinho intrometido que pode ir longe demais e penetrar na mente das personagens. "A curiosidade é indiscrição. Sem indiscrição, não acordaríamos. Mostro que a mulher encontra a liberdade em seu próprio corpo, o homem somente procura a liberdade fora do corpo. A mulher não deixa rascunhos. Ela é um rio encadernado. Tal os movimentos do jogo infantil, as personagens vão sendo apanhadas uma a uma, se revezando como pedras até o arremesso final", diz.


Mesmo sem o enredo do confinamento das cinco Marias em mente, o leitor é fisgado pela força da poesia de Carpinejar, que desmantela emoções e acerta em cheio ao relatar pequenas aflições que, levadas à superfície, surgem enormes. É como o próprio autor afirma em um dos versos, "as respostas desobedecem às perguntas", da mesma forma, a trama do livro desobedece à intenção primeira do seu criador.


"Ao publicar, o livro já não é mais do autor, não cabendo a ele definir o destino do que enxergou. O poema é apenas um impulso, não uma resposta. Só o autor que se perde pode fazer o leitor se encontrar. Criação é um desencontro encontrado. Cada poema tem a autonomia de uma jóia sonora, que pode ser usada com outras roupas. Não depende da notícia para existir ou da consciência de seu autor. O escritor não é um zelador de cemitério, ele é a capacidade de não se reduzir ao seu nome", reitera Carpinejar.


Em Cinco Marias, o poeta volta a transitar em um terreno onipresente em seus livros, o da memória - o de lembranças que se reviram e nunca dormem. Em certo momento, uma das personagens - ou todas elas, como em um coro - revela: "a memória não aceita suborno."


"Eu trabalho com a memória do que não aconteceu, a memória da imaginação, o que foi sonhado de olhos abertos. O futuro é também uma espécie de passado. Eu somente me antecipo. Ninguém consegue transmitir uma lembrança sem acrescentar um dado ou fazer uma modulação. A impossibilidade de contar a mesma história do mesmo jeito faz com que a literatura permaneça viva. O homem é mais o que ele esconde do que aquilo que ele mostra, afirma Carpinejar. Procuro expor o que eu não queria mostrar: a mentira involuntária. Toda mentira nasce de uma verdade tímida ou prematura", define o autor.


Carpinejar escreve seus poemas como se cada linha fosse uma verdade, um aforismo, que pode ou não depender do resto do corpo do texto. "Imagino o verso como uma síntese da obra. Em uma linha, é preciso fazer entender o resto do livro. De um cabelo, chega-se a decifrar a identidade do corpo. Um poema é suficiente para vingar uma história. O poeta não pode desperdiçar a linguagem, ele tem que ter algo suficientemente urgente para contar, senão não fala. Poesia é para comover, não para ocultar sentimentos."


Cinco Marias é o primeiro livro de Carpinejar após a antologia Caixa de Sapatos, que reúne trechos de seus quatro títulos anteriores. Com 32 anos, ele é um dos poetas mais premiados em atividade no Brasil e virou até nome de prêmio literário na sua cidade, São Leopoldo. Com dois meses de lançado, Cinco Marias já chega à sua segunda edição. Esse sucesso seria um reflexo de um novo sopro de popularidade que a poesia estaria recebendo nesta década?


"A poesia já é popular, cabe despertar a sua necessidade. Ela não é feita para isolar, porém para se reunir na estranheza. Quem escreve depois de um Drummond, um Bandeira, um João Cabral, um Jorge de Lima, uma Cecília Meireles, tem que se orgulhar, não baixar a testa de vergonha. Os antecedentes formam o futuro, não o reprime. As perspectivas da poesia são as melhores, porque ela não tem nada a perder. Não cabe aos poetas combater o concretismo, o formalismo, o surrealismo e outros movimentos. Até porque o combate é a forma mais forte de influência", completou.


Cinco Marias, de Fabrício Carpinejar. Editora Bertrand Brasil, R$ 19 (preço médio)

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