quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/5/2005 10:31:38 AM

FÉ E ÁLBUM DE FIGURINHAS

Gravura de Chagall


Fabrício Carpinejar





Eu tinha maravilhamento por álbum de figurinhas. Essa obsessão de colar, de armazenar as repetidas, de disputar bafo com os colegas, de ter um mundo em miniatura para cuidar. Assim como se zela por uma samambaia ou coleção de selos. Abrir o envelope era uma condição mágica. Como um presente, espiava primeiro dentro do pacotinho antes de pôr as mãos nas imagens. Sonhos curtos de um número ao seguinte. Ao acumular casas vizinhas, montei meu bairro, minha cidade. O curioso é que não concluí nenhum álbum, sempre fiquei perto, com uma ou duas figurinhas faltando. Mas não mandava, sob hipótese alguma, carta para o fabricante pedindo as que restavam. Considerava um meio ilegal e fácil. Existe uma ética na brincadeira, um contrato imaginário. Questão de honra conseguir as mais raras nas bancas, do mesmo jeito da maioria. Álbum nunca me serviu como um troféu, um boletim de escola, para mostrar aos pais e me orgulhar de sua perfeição. Significava o diário que não escrevia. O caderno ilustrado do tempo livre. Não ficava triste ao não completá-lo, minha felicidade consistia tão-somente em fazê-lo. Álbum é destinado para incompletude, disciplinar o esforço, respeitar os vazios. Se eu adquirisse todas as figurinhas, seria igual a tantos que concluíram o livro como uma tarefa. Se carecesse de uma ou de duas, o álbum torna-se particular, pessoal. Não concluir o livro é amor. Poucos terão as mesmas figurinhas faltando. Pode soar absurdo, entretanto, o álbum de figurinhas me ensina sobre a relação a dois. Não se deve completar tudo, preencher tudo. Há lacunas que nos alimentam. Há páginas que ficarão em branco, cromos que não serão colados, lembranças que não terão ilustração. A incapacidade de chegar ao fim é o que mais me comove, porque se reserva um espaço para companhia. Igual medida encontro no casamento. Não é a paixão. Não é a amizade. Não é a afinidade. Não é a convivência. Não é a sorte. Não são os filhos. Não são as conveniências. Nada disso determina a harmonia de um casal. Qualquer uma dessas causas não impedirá a separação. O que exerce a diferença e sustenta a permanência é a fé. Duas pessoas que se apaixonam uma pela fé da outra é amor. Duas fés juntas, nem Deus impede, nem o diabo separa, nem o azar dificulta. Fé é espessura. A fé que começa em um álbum de figurinhas e não termina com ele, a fé que começa com as mãos dadas no cinema e se transforma em nó de balanço, a fé que começa ao arrumar uma gravata do marido ou ao limpar a boca da mulher no almoço, a fé que começa sem importância, em uma miudeza que só quem tem fé repara. A fé, que não se importa com provas e acusações, que não mudará o que acredita por indícios e suspeitas, que perdoa antes de acontecer, que reconhece antes de ver, que compreende antes de ler. A fé que não é roupa para se achar no armário, muito menos memória para consolar. A fé.

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