quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/28/2006 10:52:37 AM

ESTADO DE S.PAULO, CADERNO CULTURA

Domingo, 28 de maio de 2006



O BRANCO QUE CICATRIZA A POESIA

Em seleção mais de perda do que beleza, o verso pessoal de uma autora única no cenário brasileiro



Fabrício Carpinejar

ESPECIAL PARA O ESTADO



Foto Fernando Sampaio/AE



ORIDES - Escrita substantiva, sem adornos, acessórios e outras bombas de gás lacrimejante




É poesia feminina, mas não é catártica, não é confessional, não é metafísica. Uma poesia substantiva, sem adornos, sem acessórios e outras bombas de gás lacrimejante.


Orides Fontela (1940-1998), poeta paulista, é um enunciado particular na poesia brasileira. Uma órfã de si mesma, que não deixa herdeiros e sucessores. A Cosac Naify e a 7 Letras publicam sua Poesia Reunida na coleção Ás de Colete, enfeixando desde sua estréia com Transposição (1969) até seu último volume Teia (1988). O conjunto a consagra como uma das grandes vozes do século 20 na lírica do País.


São poemas imbuídos de investigação, mas que não recorrem à confissão ou a um tom de suspiro e enlevo. Íntimos, passando a largo de intimistas. Duros, críveis, laboriosos, destinado à lâmina da pedra mais do que à maciez do musgo. Orides Fontela conceitua a poesia como uma gramática. Poucos adjetivos, uma conduta de observação pura e imanente, protegida da transcendência. Com um repertório coloquial, nunca perde a realeza ou esbarra em facilidades expressivas. É comunicativa dentro de sua densidade, urde a complexidade das mais simples figuras. Não levanta as asas para as alturas, porém impõe permanentemente um vôo rasante sobre os prédios e afazeres do corpo. 'Um pássaro/ resiste aos céus./ E perdura./ Apesar' (Teia).


Um vôo curto e insistente, mais dos insetos do que das aves. Ou talvez empreste às aves o mecanismo coercitivo das moscas, de rodear até a exaustão dos pontos de vista. Não ambiciona a beleza, e sim a dramaticidade da perda. 'O gosto/ de podre/ aguça o fruto' (Alba).


Raramente inflexiona a primeira pessoa, o que não a faz perder em nenhum momento a pessoalidade. Raramente moldura seu sopro em um arranjo messiânico, ou pratica uma escrita simbolista e musical. Atua por aproximação e distanciamento, avanços e recuos, desdobrando o exato em mais exato. Se João Cabral define melhor negando, em teses e antíteses, em solos e catacumbas, Orides esclarece sem se afastar da afirmação, da imponência biológica, de estar presente e não distrair os olhos do ponto que iniciou o discurso. Uma fixação que pode soar como concretude. Não encontra-se dispersão; identifica-se uma concentração obsessiva, hipnótica, a reverberar iluminações de seus elementos e animais favoritos como o espelho, o gato, o cisne, o cristal, a estrela, o pássaro. Condutores recorrentes que dilatam o duplo, que são espelhos portáteis para se ter mais realidade.


Sua sintaxe é lacônica, quase desmemoriada, o que enriquece a multiplicidade de leituras pelos solavancos e quebra de versos. Quase não diz, quase sai do poema apenas com a mímica. Está sempre por dizer com mensagens sucintas, inquietantes e fraturadas. O que não invalida a suavidade das descobertas: 'Leio/ minha/ mão:/ livro/ único.'


Antonio Candido destacou o tom 'combativo' de sua poética: 'O poeta conhece a riqueza potencial do silêncio ('sabe-o de cor'), mas decide profanálo.' Avessa à inspiração, gera força em decorrência da disciplina e trabalho. 'Só o nascimento grita.' (Teia)


Não transforma somente a vida em palavra, mas a palavra em vida. 'Fatos são palavras.'(Teia) Não é uma poeta que criou um estilo, criou algo bem mais difícil, uma aritmética de pensamento. Pensamento que difere da filosofia. Pensamento que é subtração. Articula uma teoria molecular de linguagem, uma 'ordem viva', dando um aproveitamento total e exaustivo do mínimo, como no poema Tabela: 'Existe// resiste/ persiste/ insiste// Desiste'. Sua concepção inusitada de arquitetura e composição verbal se ajustam ao declive, às linhas retas e formas triangulares, que escoam a claridade. Longe de acumular luz no corpo, seu corpo sua o que não precisa. 'Tão ácida a/ sede/ e a água/ tão breve.' (Rosácea) Não desmistifica, sua metáforas são antimetáforas, no sentido de desarmar a transfiguração e propor novamente a figuração prosaica do dia-adia. Há uma crueldade insaciável de se antecipar à magia e isolar os planos, prevenindo-se ao casamento das palavras. Orides foi solteira na forma de enredar a poesia.Opera a dissolução.


'A beira rio/ a lucidez/ a/ pedra/ e a pedra é/ pedra: não germina./Basta-se.'


Retira a possível surpresa. Declara que a pedra se contenta em ser pedra. Em poema similar, brinca com Bandeira e seu Boi Morto e Drummond e seu Boitempo,e reafirma a descrença: 'O boi é só. O boi é/ só. O/ boi.'


Em sua escrita, há a defesa do despojamento, de um cansaço benéfico que restará depois de tentar tudo com a literatura. 'A via é que nos tem, nada mais temos'. (Teia)


Oito anos depois da morte da autora, é possível interpretá-la de modo justo, reintegrar o prestígio ao texto e retirá-lo da personalidade folclórica, passional e complicada financeiramente, de uma artista que foi despejada e comprou briga com amigos famosos que a ajudaram no início da carreira. Isso não mais interessa.


Diante do seu trabalho, o encanto é espanto, adoração da carne. Não é por menos que se dava tão bem com o branco da página, pois sua obra percebeu que o branco recebe o sangue de todas as coisas. Cicatrizemos, portanto, sua poesia.


Orides é impiedosa com o leitor. 'É proibido/ voltar atrás/ e chorar.'


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006)

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