quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/23/2004 11:03:28 AM

REDONDO COMO A CERRAÇÃO

Gravura de Rufino Tamayo


Fabrício Carpinejar


O corpo não pode ser compreendido a não ser por outro corpo. Não pode ser julgado a não ser por outro corpo. Um corpo é o acréscimo do que se viu na infância. A memória perdoa, o corpo não. A memória esquece, o corpo incrimina. O corpo tem a vidência do erro, a espessura do erro, a devoção de uma chuva. Arregaça as águas como uma blusa. O corpo é a suspeita do mar. Assimila o que ainda não foi dito. É um vento civilizado, o discernimento enquanto confusão. O corpo trai para se proteger. Não copia a si mesmo, não entende sua letra. O corpo é mais do que espontâneo, mais do que sutil, é uma lentidão que tortura a alegria. O corpo é uma solidão nomeada, assim como a chama é uma solidão nunca identificada. Aprende-se a falar o corpo como os pássaros caminham. O homem é que devia mudar sua direção para o pássaro andar na rua. O pássaro é fundo como um sapato na janela. O corpo é fundo como a terra que começa na árvore. Há aves que somente se acordam no meio do vôo - o corpo é uma delas. O corpo soletra. O corpo se ama como uma vítima. O homem segura sua bengala entre o dedo médio e o indicador, segura a rua nas frações dos dedos, mas não segura o corpo. O corpo o despeja para o lado não barbeado do rosto. O corpo não se despede, o corpo pede o retorno com o aceno. O corpo acredita naquilo que não aconteceu. O corpo é um barco sem pulmão, o atentado da distração, uma atenção desatenta. O corpo vive o que nele morre - é o último a descobrir e o primeiro a desconfiar. O corpo não é um endereço, é se despertencer. Não atravesso o corpo, apenas o contorno. O corpo é uma casa desarrumada para mostrar intimidade. O corpo é contemporâneo de suas dores, sobrevivente dos seus ganhos. A luz jejua no corpo. O corpo não é redondo como uma ilha, é redondo como uma cerração. O corpo dança para se contradizer. O corpo tem dias mais compridos do que as mãos.

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