quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/8/2006 10:10:25 AM

AGORA E NA HORA DE NOSSAS MORTES

Ensaísta francês rememora o fim da vida de grandes personalidades


Fabrício Carpinejar

Escritor e jornalista




Mortes imaginárias

Michel Schneider

Girafa

324 páginas, R$ 45


O ensaísta francês Michel Schneider descobriu um filão no gênero biográfico, um subgênero fantasma, quase invisível. Muito mais atraente do que a vida de personalidades. Algo como uma mortegrafia, história de como os escritores morreram. Está ali abarrotando as estantes das livrarias sob títulos como O fim de, Os últimos instantes de e Os últimos dias de.


A morte toma muitas vezes mais tempo do que a vida. Ninguém anseia passar para o outro lado sem antes impressionar. Quantos escritores célebres não elaboraram seu epíteto com uma antecedência profética, a transformar o falecimento num parágrafo lapidar de seus livros? Quantos já não ensaiaram sua morte para que ela seja lembrada como um poema? Quantos se preocuparam com que estaria escrito no obituário em plena saúde?


Em Mortes imaginárias, vencedor do prêmio francês Médicis de 2003, Michel Schneider rememora como foram os desfechos de Michel de Montaigne, Pascal, Kant, Goethe, Puchkin, Balzac, Rilke, Dumas, Nabokov, Truman Capote, entre 36 personagens.


Com sua investigação psicanalítica e detalhismo poético, revira as obras, os diários, os depoimentos de amigos que acompanham o processo e transforma o manancial em um prontuário ficcional. Derrete a cera do museu. Desmistifica as últimas palavras dos escritores e desfaz a inteligência artificial de alguns enterros. ''Não há última palavra para o escritor. Ou melhor, todas as suas palavras parecem ser as últimas''. Tece uma mortalha vívida, entre o drama e a comédia. Caso não fossem as lágrimas obrigatórias, traria risos incontinentes.


A morte não respeita juramentos. Esquecê-la não isenta de vivê-la. Em Mortes imaginárias, sofre-se com Stendhal (Henri Beyle), que desejava perecer longe do público, salvo dos olhares dos curiosos, e desaba teatralmente na calçada parisiense, em ataque de apoplexia no começo da noite. Assiste-se à agonia de pensamento de Pascal e sua ''doença de querer estar sempre doente''. Maníaco pelos detalhes, toda vez que trocava de casaco, descosturava o testamento posto no forro para costurá-lo na nova veste. Enternece-se com a atitude de Alexandre Dumas, que visita o filho ao pressentir seu término e diz: ''Vim morrer em sua casa''.


Schneider alterna a afetividade de experimentado leitor com a intrepidez de crítico; é um fã curado pelo distanciamento. Em certos momentos, exala frieza de legista, em outros é diáfano, lírico e de chispas originais como seu conterrâneo Gaston Bachelard. Pretende a naturalidade do sonho depois de sonhado, enquanto interpretado, para expor suas contradições.


Se os moribundos e herdeiros procuram deixar para a eternidade as virtudes e os efeitos da genialidade, tem uma preferência pelos defeitos enrustidos e fracassos involuntários, pelos detalhes e indiscrições omitidos. Escarafuncha o que é público e delira com o que poderia ter acontecido na miúda cena privada. Cria novas hipóteses para desafiar as certezas, ou ao menos, reequilibrar o peso das verdades na balança depois de especulações seculares. Com o estilo refinado, mesclado de humor e paradoxos, seu texto tem a leveza indiscreta de notas de rodapé. Quando descreve a trajetória do italiano Dino Buzzati, encontra com uma frase a espirituosidade do chiste, ao reunir o casamento e a morte como planos deliberados de vida. ''Em 1961, depois que a mãe morreu, aconteceu uma mudança imperceptível com Buzzati, e, em poucos anos, ele fez duas coisas até então impensáveis: casar e morrer''.


Um dos mitos derrubados é o desenlace de Goethe. Sua derradeira exclamação é conhecida como ''Licht! Licht! (Luz! Luz)'', e transmite uma visão metafórica e iluminada, uma despedida da envergadura de um clássico. Mas a verdadeira afirmação que espocou de sua boca não renderia nenhum bafejo de encantamento e passaria despercebida. Comum aos mortais tal dor nos dentes. É dirigida a sua neta Ottilie e consiste em pedido prosaico: ''Dê-me sua mão''.


A verdadeira agonia não permite a literatura escrever, destinada ao mutismo mais do que aos gorjeios. No mínimo, não oferece tempo para devaneios iluminados. Os floreios ficam por conta de amigos e parentes, que, tomados da áurea de testemunhas do fim, assumem a porção leiga de escritores e exageram os detalhes.


Schneider não é bobo de acreditar que biografia significa imitação da realidade. Desde o princípio, conceitua como invenção e aproveita essa condição híbrida para narrar, por exemplo, a morte de Balzac em três versões. A primeira a partir de relato do poeta Victor Hugo, a segunda extraída de Octave Mirbeau, confidente do pintor Jean Gigoux, amante da esposa de Balzac, e a terceira equivale a um relato do que o Balzac diria de seu final. A ousadia de falar por Balzac pós-morte, tal Brás Cubas de Machado de Assis, é um dos acertos da obra, a questionar a fidelidade das duas confissões anteriores.


A coletânea de ensaios expressa sua condição de contraponto, a abalar a ingenuidade e a fácil credulidade. Trabalha conscientemente inspirado em Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, de 1896, romance que recria passagens da vida do pintor Paulo Uccello, poeta Lucrécio e de outras figuras artísticas e históricas e que teve em Jorge Luis Borges um dos seus admiradores mais entusiasmados. ''Um desses livros que eu carrego para quase todo lugar, que acaricio e maltrato como se fizesse parte de mim. Ele é o claro espelho no qual procuro minhas sombrias mortes imaginárias'', confessa o ensaísta francês.


Dos painéis funerários, os que mais emocionam são os de Rilke (natural de Praga, em 1875, e que morreu na Suíça em 1926) e Marina Tsvetaeva (que nasceu em Moscou em 1892 e faleceu em Kazan, em 1941), com o toque pungente do lirismo. Ambos se correspondiam e os capítulos quase se tocam pela dramaticidade e atmosfera lúgubre. Em ambas recriações, ressoam os tubos de órgão de igreja. Poderia dizer que se completam. ''A morte é uma carta'', pontua Michel Schneider. Marina escreve a Rilke quando ele já foi, continua escrevendo mesmo depois dele ter morrido, continua a fazer perguntas. ''Como é escrever aí bem longe, no novo lugar?'' Amor póstumo, ardente e impossível, que não se importa com a ausência de resposta. Sozinha, a viver de biscates em uma União Soviética totalitária e braçal, Marina não consegue superar a idéia do suicídio. Não é um disparate, uma decisão súbita que consuma ao se enforcar em 31 de agosto de 1941. Como ela registra: ''Ninguém vê - ninguém sabe - que há aproximadamente um ano meus olhos procuram um gancho... Há um ano que me esforço em morrer'', escreveu Marina.


Por mais que o autor tente escrever sua morte, não será de sua autoria. A morte é apócrifa. É de ninguém.


* Fabrício Carpinejar é poeta e autor de Cinco Marias e O amor esquece de começar (ambos pela Editora Bertrand Brasil), entre outros.


(Publicado no Jornal do Brasil, caderno Idéias, 8/4/06)

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