Portugal, sexta (7/4/06)



POETA DA LUPA
O poeta gaúcho Fabrício Carpinejar estará em Lisboa para apresentar a sua primeira edição em Portugal, "Caixa de Sapatos" (Quasi), com o apoio da Fundação Luso-Brasileira e da Embaixada do Brasil. O lançamento da antologia realiza-se na próxima quarta-feira, às 18 e 30, na Fnac Chiado. Diz: "Os meus versos são cadarços de uma árvore". O que imaginou é sua verdadeira memória.
Texto Ana Marques Gastão
Fotos Renata Stoduto
Poeta do mínimo, "doente" da infância e do excesso de memória, mesmo da do futuro, Carpinejar está em Lisboa para lançar, no próximo dia 12 a sua antologia "Caixa de sapatos"(Quasi). Prémio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras (2003), Fabrício faz ficção com a poesia, uma "narrativa sussurada".
Numa caixa de sapatos - título da antologia que publica agora em Portugal - , arruma-se o pouco e nela cabe uma metáfora do universo. Que descobrirá o leitor português dentro da sua caixa de sapatos?
Uma caixa de sapatos representa o que cabe na palma de uma mão. Ao envelhecer, procuramos nos despertencer, nos despojar, vamos diminuindo as malas, as bagagens, o trânsito, o próprio espaço do corpo. Ficamos reduzidos ao essencial. A partir da lembrança do desejo, pode reconstituir-se todo o desejo, arder sem querer, sem data e alarme. Numa pequena caixa de papelão, há carvões da memória que julgamos parados mas que se acendem com a respiração próxima. Uma caixa de sapatos representa um auto-roubo. Furtamos de nossa própria casa para dar um sentido pessoal a existência, um modo de justificar que não vivemos em vão, que preservamos uma reserva de intimidade e de desconhecido.
Trata-se, então, de uma reconstrução fragmentária da memória?
Pode vir a ser um maço de cartas, uma pequena fotografia da infância, uma letra ilegível do avô, uma bússola afogada, um relógio amputado, tanto faz, o que importa é que nossos fragmentos carregam a unidade e a força do conjunto. Preparei uma caixa de sapatos com meus poemas. Meus versos são cadarços de uma árvore. Cadarços que foram balanços de alguma menina, balanços de algum ouvido mais atento na janela. Eu sou minhas ruínas. Minhas ruínas têm telhado de ervas. Não escolho o lugar, o lugar me escolhe. Cresço em qualquer solo. Especialmente na boca de um pássaro.
Esta antologia constitui-se como uma recolha reelaborada de quatro livros, unidos por um fio narrativo. Considera-a um balanço, o de um poeta jovem, todavia já vencedor do Prémio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras. Poesia: um exercício ou uma revelação?
Uma revelação. Procuro desaparecer para que o texto seja visível. No amor e na literatura, deve ter-se a humildade de vencer o orgulho e a vaidade. O poeta não é o que fala, mas o que escuta errado. Ele escuta o batimento, não a voz. Ele escuta o tombo, não o voo. Ele escuta a alma das coisas antes do corpo sonoro. A precipitação, não a consequência. Eu exercito o anonimato. Eu me antecipo. Não há como fazer o fogo recuar.
Reoordenou o seu percurso poético?
Minha proposta era reescrever meus livros em uma outra ordem, fazê-los vibrar diferentes, sem o enredo que unifica minhas obras como capítulos de um romance versificado. Eu queria manter a poesia mais do que o poema, a atmosfera de encantamento e surpresa, de volúpia e procura, de perda e resistência. Eu sou tantos que não me reconheço. Preciso de alguém para me identificar. Eu preciso sair de mim para ser mais. Não há idade para me definir. A vida não pergunta a idade antes de bater. Há toda uma eternidade para me acusar. Espero ser condenado.
Há, então, um lugar para uma espécie de heteronímia?
Fernando Pessoa teve que se multiplicar para continuar único. Eu tive que me dividir para sustentar o mesmo. Eu sou como uma criança que nunca largou seu amigo imaginário (a poesia). Ele cresceu, amadureceu e ficou, eu deixei de existir.
Existe uma faceta romanesca, ficcional e efabulatória na sua poesia que não deixa de fora o elegíaco e é fértil no aforismo...
Procuro conciliar fábula e aforismo, ser simples, escrever como quem conversa e conta uma história, sem a pretensão de ser mais inteligente e sensível do que o leitor. Anseio por uma música falada. O poema é mais suave do que uma canção, algo como um assobio. Não quero ser reparado, mas que o leitor tenha a noção de que está se lendo. Aprendi a errar dentro do texto. Quem sempre acerta não é humano. Aproximo-me do falível, da falha, da compreensão; o poema como um acto extremo de perdão. Não me perdoo por não ser como eu penso, por nunca chegar onde sonhei, por ter cansado no meio do caminho, por ter desistido. Perdoar é permitir o improviso, a estranheza necessária, a alegria imprevista.
Assume uma dimensão, de alguma forma, diarística na sua obra?
Procuro essa inclinação diarística. Escrevo o diário do que não fui, o que imaginei é minha verdadeira memória. O que o homem imaginou é também vivência, biografia. O real começa no pensamento, não é somente depois dele.
Bachelard fala da lupa do botânico, referindo-se a uma infância que devolve o olhar engrandecedor da criança. Carpinejar é um poeta da lupa?
Bonito: poeta da lupa. Meu irmão queimava formigas com lupa. Eu um dia tirei o vidro da lupa e libertei o formigueiro da coleira da luz. Parto da crença de que as palavras desnecessárias são as mais importantes, os detalhes distraídos são os mais decisivos, que uma mania se expressa melhor do que a beleza. Nunca me curei da infância, meus olhos continuam deitados como um beliche. Eu prefiro o ínfimo, a intimidade do que é desperdiçado. Sou um catador do mínimo, do que não serve ao jornalismo. Um observador indiscreto. Fico a escutar as pessoas por aquilo que elas não falam. Aquilo que elas querem esconder. O que elas pretendem esconder é o meu poema.
A sua poesia viaja da infância à velhice. Chega a antecipá-la em Terceira Sede (escrito em 2045, aos 72 anos). Como se recorda da sua infância, filho de poetas, Maria Carpi e Carlos Nejar, a do menino que «falava torto sem o erre», e se dizia «feio como uma assombração»?
Não melhorei meus defeitos, apenas aprendi a conviver com eles. Minha autocrítica é terrível, sou o primeiro a me avacalhar. Tenho a vocação para me delatar. Recebi os mais terríveis apelidos na infância. A primeira regra é nunca perguntar por que te deram o apelido - a resposta pode ser bem pior do que se esperava. Eu passei a rir de mim antes de qualquer piada. Passei a rir sozinho de mim. Falava torto e comecei a apressar as palavras para não ser notado. Apressei tanto as palavras que elas viraram música.
Teve uma infância solitária, então, que lhe deu uma singularidade nascida de uma intolerância com o que é banal?
Minha infância foi de uma solidão húmida, de Inverno e lenha no pátio. Em casa, não havia paredes, mas prateleiras. Todo livro era sublinhado pela mãe e pelo pai. Iniciei a sublinhar para me corresponder com eles. Toda obra virou as cartas que mandava e as cartas que recebia. Minha infância foi a velhice que Deus pôde me dar. Na infância, o excesso de imaginação. Na maturidade, o excesso de memória. Os dois extremos se tocam e se misturam. Minha obra se faz do fim ao início, a procurar o ventre.
Como entende o envelhecimento: como o naufrágio de quem «tem medo de dormir na luz» e se confronta com o amor que se vai?
Minha ignorância nunca será maior do que o conhecimento e isso salva a minha intuição. Eu cansei de ver o velho estigmatizado, rejuvenescido em propagandas, como se o velho tivesse vergonha de envelhecer e só prestasse se maquiado, andando de jet ski ou descendo escorregador. Recuso a aceitar uma idade tão luminosa e sábia como uma caricatura sombria e deformada. Eu me envergonharia se não envelhecesse, se nunca aceitasse minha condição passageira, se fosse imutável e preso a uma única opinião. Respeito os limites - eles me ensinam a lidar com o que sou. Não me suportaria infinito. Envelhecer é se encantar com as faíscas. Dormir mais cedo para acordar o dia, senão o dia se atrasa para o trabalho.
«Descobre-se o amor/na iminência de perdê-lo», escreve. O amor é «esse dar-se sem retorno ao desejo sem limite» de que fala Blanchot?
O amor nunca parte por inteiro. Ele fica mais forte com as sobras. A ausência é ainda carne. Discordo de Blanchot: o desejo pede unicamente a estreiteza de um corpo, a pequena extensão de uma barca, e não depende do mundo para sobreviver. Todo o dar-se exige retorno. O retorno da própria consciência. Ninguém ama sem se recolher, sem se contrair, sem recuar, sem antes soluçar alto, sem mastigar o próprio grito. O que eu escrevi é para preservar um amor que já perdi ou para ganhar um amor que já era meu. Minha cobardia me impele à coragem. Quando temos medo do medo, somos obrigados a não ter medo.
E, no entanto, o amor surge na sua obra não só na perspectiva jubilatória, mas também como vertigem da incomunicabilidade, do tédio, do terror do hábito («A aliança já é um osso no dedo»)...
Amar uma pessoa é o caminho mais rápido para se esquecer. Amamos os hábitos, não quem está atrás deles. Tento mostrar que o amor somente pode ser afirmado se houver também um desconhecimento, uma reserva de estranheza, entre o casal. O amor tem que ser lento, como um rio esculpindo as margens. Ninguém diminui a solidão com o casamento. A solidão é solteira e por toda a vida. Com o casamento, nós diminuímos o isolamento e a solidão fica habitável.
Em Biografia de uma Árvore, Dr. Ossian recebe de Avalor aquilo que julgava ser a orelha de uma árvore: um livro que guarda a voz de Deus. Que Deus é o seu e como o confronta com o absurdo, a injustiça?
Não há um Deus meu. Ele não é um objeto rezado. Há Deus e uma liberdade que é responsabilidade. Existe a crença de que ser livre é fazer o que quiser. Ser livre é zelar, guardar, proteger. Eu sou livre com minha mulher e meus filhos na medida em que busco sê-los. A independência é se educar para o convívio, se faz na dependência amorosa. Eu confronto a injustiça em minha própria casa. Meu mundo são as três quadras que meu olhar apanha da janela.
Não é um atrevimento demitir Deus com justa causa como faz nesse livro (risos)?
Não deixa de ser um atrevimento, mas demitir Deus também pode ser lido como tirá-lo do serviço de oração, do turno funcional, da omnisciência, da omnipotência, da responsabilidade de que ele faz e resolve tudo. Deus é um bode expiatório perfeito para nossa falta de acção. Deus não poderia ter nome, para não ser domesticado.
A morte é, por outro lado, «nó firme» no seu pescoço, algo de fetal, perturbador, mas simultaneamente quase afável...
A morte não é uma violência. A vida é uma violência. A morte amadurece em nós, desde o princípio, adiantamos ou a retardamos de acordo com a vontade do corpo. A morte tem um fuso diferente. Ela não conta o tempo, mas a intensidade do que se viveu.
Escreve que o pampa é o seu pátio. Sendo gaúcho, a sua poesia foge ao regional para se universalizar. Até que ponto a paisagem traça o itinerário de alguém que lança um desafio ao nada da evidência?
Nunca houve separação entre o pátio e o pampa quando pequeno. A paisagem é meu modo de inclinar a audição. A terra é mar que se abre. As árvores funcionam como sinaleiras da lonjura. Eu combinei esse lado ancestral com uma urgente urbanidade. Falo do ônibus, do casamento, do bar. Tanto que vejo meus livros como a meditação sobre um único núcleo: a família. Ali está toda a sociedade, os nervos e o humor, a impossibilidade e a herança a ser dilapidada. O que se carrega da família influencia até o que não somos.
Chega a Portugal com o quê na bagagem?
Com o corpo e o mínimo de roupas para não causar escândalo. Tenho também uma foto do poeta São Francisco de Assis no bolso. Ele é meu padrinho. Na primeira série, a professora avisou a minha mãe que eu não iria me alfabetizar, que era um caso perdido. Ela acertou na segunda hipótese, errou na primeira. Em 4 de outubro, dia da poesia e de São Francisco, depois de sucessivas reprovações, no estertor do ano lectivo, eu consegui minha primeira nota sem caneta vermelha. Todo dia eu chorava na caixa d´água, em cima do telhado. Neste dia, eu colhi uvas para entregar a minha mãe, que me ensinou a montar palavras como um quebra-cabeça.
A questão já é lugar-comum. Mas que distâncias cumpre esbater entre Portugal e Brasil? Esta não é uma «viagem cancelada», pois não?
A poesia portuguesa é grande, uma das melhores do mundo. A poesia contemporânea brasileira está em seu melhor momento. Há alternativas editoriais de intercâmbio como Inimigo Rumor, Storm e editoras se esforçando de ambos os lados como a Quasi. Percebo um interesse mútuo, uma curiosidade de diminuir as amarras e mostrar que não será um sotaque ou uma moeda que vai nos diferenciar. Portugal é um irmão, não um colonizador.
Há um lado profundamente imagético na sua escrita que aprende a desescrever. Dialogam como coloquialidade e erudição?
Minha erudição serve para desbastar, destruir. Que a minha literatura seja modesta e sincera, que não dependa de aspas para sobreviver. Não pedi emprestada nenhuma grandeza. Poesia não é complicar, mas interrogar com surpresa. A imagem é o pensamento puro. Eu me comunicava por imagens, disciplinei-me a me comunicar por uma filosofia discreta. Depois de escrever, inicia-se a travessia mais árdua: desescrever. Renunciar a autoria para ser poema.
O poeta nunca é o verdadeiro negador? Na medida em que deseja revigorar as palavras, é um falso niilista?
Eu minto com sinceridade. Minha mentira é excesso de contigente da imaginação. Na adolescência, eu criava enredos e autores que não nasceram. Um dia eles vão nascer, à revelia do que disse. A mentira antecipa a verdade. Quem conhece a esperança, não precisa ter fé. Eu sou linguagem principalmente quando não falo.
Cioran diz que «a poesia é o absoluto das nossas horas negativas». É o quê, para si, a poesia?
A poesia não é o absoluto e essa afirmação acaba confinando o gênero a uma maldição de eleitos. Poesia não é exclusão, mas doação. Todos se comunicam por poesia. No futebol, lençol e janelinha são metáforas. Tudo se faz por metáfora, chiste de imagens. A poesia escrita é que mete pânico, porque criaram a imagem de poeta deprimido e antisocial. Cabe nos aproximar da poesia falada para superar preconceitos, mostrar que o poema é mais do que o livro, porém uma interpretação do mundo, o alfabeto da água. Contrariando as 'horas negativas', Cântico dos Cânticos é uma poema alegre. Assim como os versos de São João da Cruz. O desespero não chega nem perto da electricidade da alegria.
Escreveu que não sabe fechar um livro ou vedar uma frase. E esta entrevista, fecha-se como?
Ela começa fora de nós. Como uma chama que aparentemente se apaga com os dedos, mas fica impressa na mão.
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