quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/3/2005 04:49:07 PM

4 de julho de 1980

Gravura de Francis Bacon


Fabrício Carpinejar





Minha mãe nos acordou cedo, bem cedo, antes do armazém do Seu Alencar descer sua porta de ferro. Botei um conjunto azulado, com gravata. Os outros três irmãos faziam fila no banheiro para se arrumar. Eu não completara oito anos e ainda não havia aprendido tabuada, o que não fazia nenhuma diferença. O pão torrado lembrava comida velha. Mastiguei com receio. Toda vez que mordo com receio, eu engasgo. Os farelos irritaram a garganta e tossi durante o percurso do ônibus. O papa João Paulo II estava passando pela primeira vez em Porto Alegre. "Imagina, meus filhos, veremos o Santo Padre", minha mãe exclamava, repetitiva, querendo acreditar no encontro. A professora ensinou a semana inteira a cantar uma letra para recebê-lo: "A benção, João de Deus, nosso povo te abraça. Tu vens em missão de paz. Sê bem-vindo e abençoa esse povo que te ama". Parecia final de Copa do Mundo, a cidade atiçada na rua. Recebi uma bandeira branca, que quebrou a haste pela força do vento na janela. Meu brinquedo durou nada. Botei o pano no pescoço para disfarçar a gravata de Mickey. Aquele dia foi uma missa interminável, sem sermão. Cada um recebeu um sanduíche de mortadela. Entramos na varanda de um prédio, de frente à rótula da avenida Erico Verissimo. A mãe puxava nossos braços, uma carroça com rodas soltas. "Não podemos nos perder um do outro", ela gritava. Invejava quem se perdeu de sua família. O muro da varanda era mais alto do que meus 1,30m. Via unicamente os outros apartamentos do outro lado da rua. Miguel, o caçula, ocupou o único lugar possível no colo da mãe. Eu enxergava as infiltrações da parede e imaginava o rosto do papa desenhado nas rachaduras. Foram quatro horas esperando. "Ele fala português", a mãe contava detalhes e narrava o invisível. "Como se falar português fosse difícil", pensei. Um cachorrinho manco subiu à varanda. Não compreendi como chegou são e salvo. Andava com três pernas e seu trote aspirava à elegância ensaiada de uma marcha militar. Começou a lamber minha mão. Reparti meu sanduíche de mortadela. Comeu desesperado, subindo com os dentes mais do que deveria. Trincou minhas unhas. Ainda por cima era vesgo. Mancava também de uma pupila. Era um cão de três patas e um olho. Reduziu seu corpo a peso pluma. Brinquei com sua penugem amarela e acalmei seu susto diante da multidão de tênis, que pulava, flexionava as solas, pisava em qualquer carne macia. O papa atravessava a avenida em carro aberto. Acenava com seu hábito branco de botões grandes de capote. Milhares de fiéis cantavam o bordão. Na hora, eu me esqueci da canção. Eu decoro para esquecer. Ou decoro somente o esquecimento. A falta de Deus também está nos detalhes. Até hoje digo que vi o papa para a mãe. Na vida, estive sempre muito perto de minha ausência.

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