quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/17/2006 11:01:09 PM

O Estado de S. Paulo, 16/4/2006, página 6 do Caderno 2


A ESTÉTICA DA AUSÊNCIA EM BLANCHOT

Ensaísta francês questiona o culto da personalidade dos escritores, defendendo que o poder não está no autor, mas na obra





Fabrício Carpinejar

Especial para o Estado


Maurice Blanchot não se deixava fotografar. Figura misteriosa e reclusa, morreu aos 95 anos, em 2003. Tampouco concedia entrevistas. Nas últimas décadas de vida, esteve escondido, para que os leitores esquecessem seu rosto e valorizassem unicamente sua obra. Seu projeto literário beirava o de Kafka, só que na filosofia da linguagem.


Em vez de pedir para queimar seus escritos, queimou seus vestígios biográficos. Em ambos, a necessidade de ser igualmente o que a literatura é capaz de nomear e o que ela não consegue alcançar.


As narrativas ficcionais de Blanchot, como Pena de Morte (Imago) ou Thomas, o Obscuro, não chegam perto do lastro luminoso de suas reflexões ensaísticas. Não porque são medianas, mas a crítica dele subiu alto demais e influenciou várias gerações de escritores e filósofos, como Michel Foucault e Jacques Derrida.


Talvez a desaparição progressiva a que se impôs seja reflexo de sua história tumultuada. Filho de uma abastada família católica, cursou literatura alemã e filosofia. Nas décadas de 30 e 40, atuou como jornalista de extrema-direita. A Ocupação da França pelos nazistas transformou suas opiniões e o aproximou da Resistência e do Partido Comunista. Na 2ª Guerra, o judaísmo e o Holocausto se tornariam bandeiras, como a sinalizar uma remissão pelas idéias da juventude.


Não é um terreno fácil o que pisa Maurice Blanchot. Nem poderia, ele não identificava a escritura como comunicação, mas como ruptura da comunicação. São as falhas, o ruído e o inacessível que o interessavam. Defensor radical da literatura moderna, queria o "pensamento de fora", contra as tendências realistas. Não bastava ao autor descer à rua, tinha de descer ao inferno. O mundo ainda não era o mundo da linguagem.


Com o lançamento no Brasil de O Livro por Vir (versão de Leyla Perrone-Moisés), que reforça o acervo traduzido do escritor, ao lado de A Parte do Fogo (Rocco), O Espaço Literário (Rocco) e A Conversa Infinita (Escuta), entende-se melhor sua proposta. Criou uma escritura absoluta que buscava tocar no inominável, no invisível, no inaudito. Serviu-se, portanto, de Joyce, Henri Michaux, Samuel Beckett, Mallarmé, Nietzsche, Hermann Broch, Robert Musil, todos transgressores que estiveram no extremo da metalinguagem e que representam a crise do sujeito.


Seu desejo era o de desaparecer ou vigiar o tinteiro como um fantasma. O Livro por Vir é seu testamento, a base de sua estética da ausência. Questiona justamente a glória. Serve para prevenir os escritores do culto da personalidade. Muitos ambicionam aparecer ou se regozijar do nascimento editorial antes mesmo de consolidar seus trabalhos.


Blanchot adverte dos riscos de confundir o poder de nomear com aquilo que se nomeia. O poder não deve ficar com o escritor, mas com o que foi escrito, que tem uma existência independente dele. O objeto literário, de expressão própria, regra-se de forma autônoma e intransigente.


Nesse sentido, ele separa conceitualmente publicar de escrever. "Publicar-se não é fazer-se lido", diz. Escrever é mais fundo, tem uma carga de sofrimento e renúncia, de crise de consciência e de responsabilidade. Chega a ser um atentado à facilidade. Portanto é, em certa medida, recusar-se a escrever. O confronto dolorido com a palavra caracteriza a perda de unidade da literatura do século 20, que não ficou alheia à realidade social e política após sucessivos genocídios. "Cada escritor faz da escrita seu problema, e desse problema, o objeto de uma decisão que pode mudar." A violência original de um estilo residiria no jeito de lidar com o impasse. O pensamento se firma na impossibilidade de pensar.


O ensaísta francês expõe os perigos de se confiar em um público que "antes de já ter lido já leu" e que "acha tudo interessante ao mesmo tempo não se interessa por nada". Dessa feita, Blanchot deseja como Paul Valéry ser lido várias vezes por um leitor do que ser lido por muitos leitores uma só vez.


Em sua tese, o público procura o que é conhecido enquanto o escritor se faz por aquilo que falta conhecer. São dois destinos diferentes. O escritor inaugura e funda, enquanto o público repete e reproduz necessidades.


Homem de "obscura exigência", preocupa-se em O Livro por Vir do significado da arte, para onde vai a literatura, e chega a desenhar o perfil psicológico do último leitor (e, por conseqüência, do último escritor).


Um de seus espelhos é "o vazio ativo" de Antonin Artaud (O Teatro e Seu Duplo). Narra que a estréia do idealizador do teatro da crueldade foi formada pelas explicações e defesas de sua poética. O editor Jacques Rivière recusou poemas de Artaud para uma revista e, em seu lugar, decidiu publicar a troca de correspondência em que ele explicava a insatisfação de seus versos.


A aceitação da insuficiência é também a força de Blanchot, que não dá respostas ("as respostas são perguntas com azar"). Formula perguntas intermináveis para exercitar a coerência e enrijecer as dúvidas. Toda dificuldade externa resplandece e recompensa o esforço interior de investigação.


Quando fala de Artaud está fazendo um julgamento de sua teoria: sofrer permite não esquecer, lutar contra a totalidade imediata das aparências significa acolher verdadeiramente a linguagem.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e escritor, autor de O Amor Esquece de Começar (Bertrand, 2006, crônicas)

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