quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/12/2005 11:32:07 AM

PESSO

Gravura de Monet


Fabrício Carpinejar





Fico arrependido ao brigar. Não planejo minha raiva a ponto de soltá-la devagar, com humilde arrogância, se é que existe algo assim. Não saio de uma discussão com a convicção de estar certo. Não saio leve, com a calma de quem fez o que deveria fazer. Não saio impune, a jogar futebol e beber depois. Não saio amasiado, esperando o pedido de desculpas do outro. Saio ofendido, alterado, com a respiração presa. Como se tivesse sido espancado por abelhas. Entro em desativação total. Discutir me faz mal, como um luto. Subir a voz, empurrar, sortear desaforo. Eu me sinto grosseiro, egoísta, ínfimo. Os vizinhos escutam os berros, as cobranças, as ironias, a bateção de portas. Eu me vejo como um mentiroso, que não soube tocar e amar a não ser pela violência. Exagerei na maldade, falei o que não quis dizer, mas falei e agora há uma responsabilidade em ter inventado. E as palavras que eu disse involuntariamente serão cobradas por quem xinguei. Serão catalogadas, fichadas, examinadas com rigor. Brigar é estornar o depósito da fidelidade. É desmerecer. É desqualificar. É rebaixar logo o que mais valorizamos, para aparentar seriedade e preocupação. É bancar o triste e ofendido para convencer que sou mais triste e ofendido do que qualquer um. Briga-se para assegurar exclusividade da dor, quando poderia garantir no lugar a exclusividade da alegria. Pode ser ciúme, inveja, incompreensão. Nenhuma briga começa por um motivo generoso, e sim por banalidades. Saio de toda bronca querendo fazer as pazes. Não suporto dormir em cama separada, não suporto atravessar a noite no desentendimento, não suporto as indiretas, não suporto observar o desconcerto dos filhos, no meio, fingindo olhar a tevê. Acho que sou fraco, sou tolo, porém engulo de volta o orgulho, como quem é obrigado a tomar um remédio amargo de uma só vez. Um remédio para controlar a acidez da memória, a acidez do estômago, a acidez dos lábios. Peço desculpas ainda que não seja o culpado. Tento fazer a amizade com o riso. Tento apelar para o abraço. Tento inclinar o dorso em barco, ainda que o barco engatinhe em terra seca, ainda que o barco demore para a chuva, ainda que o barco seja o leme de uma árvore. Ao brigar, procuro os cartões que recebi de meus filhos. Os primeiros, dos 3 aos 5 anos, feitos com desenhos e letras garrafais, com uma distância enorme entre as palavras. Na época do presente, corrigia o português deles, procurando inspirar a escrever certo. Que ridículo. Não era o momento de corrigir nada. Hoje admiro qualquer erro de concordância que encontro na antiga cartolina, nos postais com colagens de revistas, nas cartas de aniversário, pois há espontaneidade no ato de dizer. O deslize na ortografia é a paz que não encontro mais em mim. O deslize na ortografia é como um beijo que salta do rosto e estala nos ouvidos. Prefiro muito mais o 'pesso que Deus pássaro te proteja' de meus filhos pequenos do que o 'peço' adulto, que é uma ordem, não uma reza. 'Pesso' é quase uma pessoa. 'Pesso' é Deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário