quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/28/2005 08:45:01 AM

CRONÓPIOS


Há uma nova revista digital no mercado, Cronópios, editada por Edson Cruz e Adrienne Myrtes (texto) e Pipol (arte). Assino a coluna Orelhão. Confira.



ORELHÃO



TATUAGENS TRAÍDAS



Fabrício Carpinejar





A linguagem pode trair ou tardar. Quanto maior o domínio sobre ela, mais ela confunde. A linguagem não expressa o que se quis dizer, mas o que se conseguir dizer, que faz uma tremenda diferença. "Tatuagens" (Escola, 128 páginas), do paulista Alfredo Líria, retrata a obsessão em transmitir mensagens pelas tatuagens e piercings e de expor juras eternas que serão - infelizmente - provisórias. A tatuagem simbolizaria, segundo Líria, um segundo registro de nascimento ou de óbito. "Como serpentes que trocam a pele familiar, a escolher o destino da primeira".



O autor demonstra maturidade na estréia, favorecendo a atmosfera de confusão da identidade de um adolescente, que tenta dominar o seu tempo, porém lhe falta a clareza da experiência. Confirma o pensamento do americano Ralph Waldo Emerson, em seu ensaio "Autoconfiança", onde chamava atenção para o desconhecido "oceano interno": não adianta pedir água ao vizinho antes de aprender a nadar em suas próprias idéias.



Em escrita elegante e solipsista, o escritor criou uma aventura psicológica, um laboratório de reações diante de um fetiche. É um conto alongado, entre o romance e a novela, a narrar o tormento de uma escolha precipitada e a angústia da punição. Seu único pecado é não prolongar a periferia do enredo, deixando de reforçar a camada de tinta e de densidade no retrato dos protagonistas. Como um relógio que necessita dar corda, as figuras centrais deveriam receber um pouco mais de espaço de desafogo para extravasar suas crenças. O ficcionista perde o brilho no combate imediato às adversidades e na formação apressadas de juízos, ao invés de prolongar as contradições, as lacunas e os antagonismos. Há uma certa preocupação burocrática em diferenciar o belo do sujo, o certo do errado, o inferno do paraíso, que não combinam com a reflexão profunda da linguagem que está em evidência.



"Tatuagens" remonta a história de Paulo Cartier, um entregador de pizzas de São Paulo, que decide gravar a pele com ideogramas. Ele coloca o nome de sua namorada, Lisa, na língua chinesa, esperando perpetuar uma relação que já está prestes a terminar. É seu último golpe para a permanência dela, uma jornalista que não suporta o desnível do diálogo e as veleidades da idade. "Ele sentou na poltrona para deixar um testamento em sua pele, indeciso entre as estampas de um álbum preto. A agulha esquentava, a evocar as obturações no dentista. O amor por Lisa seria uma fotografia impossível de rasgar. Ela não teria a chance de rasgar sua aparição da foto, da carne do tempo. Teve um medo poroso, porém não retrocedeu da decisão. Queria algo luminoso nas costas, não algo óbvio, uma estampa em outro idioma talvez, que pudesse traduzir ou vir a entender anos depois. Pediu ao tatuador: escreve Lisa em chinês e assim esqueceu a dor".



O rapaz repete "Cândido", de Voltaire, no sentido de sair ao mundo em busca do conhecimento e pagar caro pela sua ingenuidade. A opção dele acaba sendo traída. Carrega uma mensagem às costas, que não vê e apenas apressa o desmoronamento do namoro com Lisa. Não tem como a tirar, e isso o isola. De feição carismática e expansiva, assume a condição anti-social, amargurada e insegura no trato com as mulheres. Torna-se prisioneiro de um nome. Não entende como Lisa foi tão insensível a ponto de findar a relação depois dele mostrar a tatuagem. "'Eu fiz isso em tua homenagem¿, disse como quem faz uma oferta impossível. Levantou a roupa com o desprendimento de um stripper profissional. Seguia uma música que só ele ouvia, um assobio que ficou ao léu na boca. Dançava. Lisa riu encabulada até o momento em que deslizou com os dedos na marca ainda inchada. Ela entenderia, pensou, havia se formado em literatura chinesa pela USP. Abrupta, fechou o rosto e a bolsa. Partiu sem dizer nada". A falta de explicação acelera a desvalia de Paulo, que não suporta recomeçar a vida sem encerrar a reencarnação amorosa. Ao final, volta novamente à cadeira preta do tatuador (símile de tradutor) e reencontra o seu símbolo. Iria fazer uma nova inscrição, mas desiste quando lê a legenda de sua conhecida e atormentada penugem chinesa: "Foda-se".

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