quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/29/2005 06:10:16 PM

GÊMEOS

Gravura de Piero Della Francesca


Fabrício Carpinejar





As leis não pesam o espírito. Nem a linguagem pode falar tudo. O que não se entende a tempo ainda é tempo. O que não está no corpo ainda é corpo. O que não está no mundo ainda é mundo.


Vanessa está grávida de gêmeos. O menino morreu aos quatro meses de gestação e a menina permanece viva. Os irmãos estão juntos no ventre, dividindo o mesmo espaço, as mesmas cordas, o mesmo degrau, o mesmo tecido. Não há como interromper a gestação do primeiro sem influenciar a saúde do segundo. Não há como tirar o que partiu para proteger aquela que ficou.


Vanessa continua alimentando os dois com a igualdade do início da gravidez. Reconhece ambos como palpitações vivas, nervosas, definitivas. Os ruídos que escuta são dois nomes. Tenta adivinhar quem está chutando, quem está empurrando seu passo para mais adiante, quem está socando as camadas da pele como vento espantando as cortinas.


Lá dentro a irmã conversa com o irmão do jeito que pode, o irmão conversa com a irmã do jeito que sonha. A mãe confia em milagres, mesmo que os milagres se atrasem. A mãe confia que os dois sairão gritando, de mãos dadas, apesar da avaliação do médico de que um deles não sobreviveu, apesar da onipotência do exame e da descrença dos conhecidos. A mãe não perdeu a esperança porque alterou o rumo dos móveis, duplicou a cama, apequenou o salário, esticou os ossos do velho armário, teve trabalho, andou ao seu extremo, preparou roupas, experimentou em si o amor de ler o que escreveu, o amor de entender que o mistério é esperar que cada gomo seja suco diferente nos dentes.


Ela acorda quando um deles berra por ajuda e fome na noite de sua carne. E, insegura, não tem certeza de quem chama. Não tem mais certeza sobre a própria voz. Não diz nunca que um morreu, com medo de que morra em sua boca. Ela reconhece por adivinhação e não precisa ver para testemunhar.


Quanta coragem de Vanessa em segurar em seu útero os dois berços, um anoitecido e o outro amanhecido, sem favorecer e mimar um deles. Quanta coragem a de travar o carrinho do corpo na escadaria das pernas e esperar e esperar e esperar contra a ansiedade. Quanta coragem em seus tornozelos inchados, suas mãos rosadas e seu sobrepeso de telhado e chuvas. Quanta coragem em rezar debaixo das cobertas, debaixo do zumbido dos besouros, debaixo do formigamento. A mãe Vanessa curva seus ombros para que seus filhos não passem frio, como toda mãe se derrama em raízes para subir o rosto lentamente. Quanta coragem em assegurar o direito à vida aos gêmeos para que só assim eles possam ter direito à morte.


Metade do que ela come vai para os dois, a comida em dois pratos, quatro olhos. Metade da vida que vive vai para os dois. Metade da vida que não vive vai para os dois. Metade de seus cabelos vai para os dois. Metade de seus joelhos vai para os dois. Metade de sua sede vai para os dois. Metade de seu riso vai para os dois. Metade de seus segredos vai para os dois. Metade de seu lamento vai para os dois. Metade da metade da metade ainda é muito quando a palavra é intenção de música. Quando a palavra não depende da melodia ou da letra para ser ouvida. A gravidez é uma respiração sangue a sangue, mais atenta, mais rápida do que a respiração boca-a-boca. A respiração já é luz no escuro.


Vanessa está grávida de gêmeos. Um morreu e a outra vive. Não importa agora se somente uma das crianças nascerá. O parto aconteceu bem antes, na confiança. A criança que nascer será sempre duas, porque o amor da mãe foi sempre dois, sempre maior do que a realidade permitiu.

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