quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/3/2004 10:05:20 AM

PINTASSILGO


Fabrício Carpinejar


Não se aponta para um pintassilgo e se diz: "olha ali um pintassilgo!". Não, isso acontece com um pardal, um sábia, um bem-te-vi, um canário, um quero-quero. O pintassilgo (repare que palavra bonita) é o vira-lata dos pássaros. Ninguém o prende em gaiola, não é animal de estimação para exibir aos amigos, moeda de contrabando. Pintassilgo faz cócegas na mão, não avisa de sua chegada. Canta baixo somente para se ouvir. Bichinho despretensioso, que capina a calçada e as ruas ao sol e logo desaparece de noite. O máximo de pessoalidade que recebe é "olha o passarinho!" E não há nada de errado nisso. O pintassilgo acaba sendo transparente, discreto como a grama, camuflado, uma árvore andando de costas, um ninho pousando, amontoando os resíduos e trastes como se levantasse as próprias asas. Fantasma de algum fruto extinto, rasteja no húmus com a elegância de uma nuvem. Deseja apenas um muro branco para não se confundir com a sombra. A maioria das pessoas quer ser gavião ou águia, dependendo da ambição e do tamanho do bico. Procuram se preparar para o mercado como se fosse uma guerra, a entornar sanha predatória e salivar com os olhos. Já vi muito pintassilgo inflando o peito para se passar de pavão. Todos querem sucesso, estabilidade, projeção. E o que fica? Ou o caminho é voado ou avoado. As delicadezas são passageiras e intensas e surpreendem quando não estamos prestando atenção. Talvez a alegria seja a que escapa, a que não foi prevista, a que não se esperava. Revelações miúdas, troco de pão, baganhas no chão. Como descobrir que o vento nos arbustos é quando a floresta janta. Ou que as parreiras fazem lâmpadas para a chuva. Ou que os magros têm voz gorda e os gordos têm voz magra. Ou que as cortinas acenam desesperadas aos passantes. Se a aparência é tudo, a nudez deve ser nada. Quando visto nada estou aparentemente nu. Eu me vejo como um pintassilgo, parecido com o que não fui, e não um gavião. Minhas raízes são de caber em um sapato. Martelo com os cotovelos. Minhas pálpebras só rendem fio para um ninho, sem sobra para casaco. Tenho mais vontade de dormir diante da palha do que de uma cama. Não posso depender de uma ambição para me encontrar e do sucesso para me justificar. Não sei me explicar, explicar é se acusar. Prefiro me confundir para não terminar de falar. Reconhecer minha pequeneza é o que posso oferecer para estar em dia com a consciência. Não sou grande, não nasci para ser grande, mas para ser esquecido como elástico de cabelo, autoria de provérbio, ramo de hortelã, concha arredondada de espuma. No fundo de cada palavra, alguém está sonhando. Bato na porta da palavra para acordar seu hóspede. Moro em um pintassilgo. Vivo com um bando de minhas patas, a engolir o vôo e iluminar a fome.

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