quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/23/2005 02:01:19 PM

PÃO VELHO

Pintura de Man Ray


Fabrício Carpinejar





No Natal de minha infância, atendia mendigos que batiam palmas diante do portão. Não existia campainha. Eles gritavam: - Ó de casa. Conheciam a vizinhança de cor. Chegavam a tirar o chapéu ou a boina na hora de falar. Chamavam qualquer pessoa de senhor ou senhora, independente da idade. Podia ser até criança, tanto fazia. Com respeito (ou seria ternura?), perguntavam se havia algum pão velho para dar. Eram elegantes e educados, sem o golpe das feridas e das histórias forjadas, sem mentiras e receitas de hospital. Não cobravam pão novo e quentinho, nada que pudesse ser retirado da mesa. Queriam algo que fosse sobrar na despensa.


Lembro que ofereci um pão recente e o mendigo devolveu no ato:

- Não, quero um velho, este sua mãe pode precisar.


Fico pensando que nunca mais recebi pedido semelhante. Hoje o mendigo não pergunta, exige. E xinga se não recebe a solicitação. E amaldiçoa independente da reação.


Perdemos a delicadeza do antigo, do trato, do pão velho. Não aproveitamos mais os sentimentos que já foram usados, os amores que já foram consumidos, as amizades que esqueceram de telefonar. Não aceitamos a velhice sequer de um dia. Não aceitamos a velhice sequer de uma hora. Não aceitamos a velhice sequer de uma palavra. Nosso armário, nosso guarda-roupa, o dicionário, a gaveta, o bidê são asilos. As lembranças são os parentes que não visitamos. Empilhamos frases e nomes em um canto jurando voltar e não voltamos. Guardamos livros e vidas em um canto jurando voltar e não voltamos. Porque acreditamos infelizmente que não presta o que aconteceu ontem.


Nossa indigência é emocional e pode se infiltrar em qualquer contra-cheque ou classe social. É rancorosa e agressiva. Uma indigência que não tenciona compreender, que está cobrando antes de ouvir a resposta. Uma indigência ofensiva, desaforada. Uma indigência arrogante que não iguala, mas divide. Em vez de ir atrás, ficamos esperando. Em vez de agradecer, reclamamos o que não recebemos. Em vez de ouvir o outro lado, apressamos em falar. Em vez de respeitar, cobramos.


Nem o mendigo, nem ninguém deseja o que não é do dia. Não se recolhe os farelos como unhas de criança. Não se lê mais cartas nas figuras da toalha de mesa. Ou se procura o nome de um amor no macarrão. Ou se adivinha o passado na borra do café.


Sinto falta da minha avó em casa para abençoar o pão velho em uma sopa.


Por enquanto somos os pássaros. Mas haverá o momento em que seremos as migalhas.

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