quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/21/2006 11:14:03 PM

MAIS ROSTO

Pinturas de Paul Klee


"Suas mãos iam e vinham várias vezes. Meus raros cabelos tornavam-se longos com seus gestos."


Fabrício Carpinejar





Eu tenho cabelo curto. Curto é uma forma educada de dizer que não tenho mais cabelo. Tenho a lembrança do cabelo. Uma clareira. De costas, sou um monge beneditino. Só de costas.


Quando criança, meus cabelos eram claros, leves, nem pesavam. Voavam, será que esqueceram de voltar?


As franjas eram cortadas com uma bacia. Tornei-me um bleateamaníaco sem saber. Era o único loiro de casa, o que gerava ciúme entre os irmãos. Assim como alguém de olhos azuis sofre o olho-gordo dos castanhos. Deu no que deu: meus cabelos até que resistiram um bom tempo, mas caíram de inveja na maturidade.


Quando adolescente, não pensei em economizar o dom. Usei cabelo até cintura. Tentarei reconstituir, apesar de ter queimado todas as fotos da época: cordas de um violão atrás e franjinha na frente. Fui o primeiro caso de dupla sertaneja estando sozinho.


Não precisava esforço para definir meu destino capilar: bastava consultar os álbuns de retratos da família. Do lado materno, o avô Leônida ficou como eu, devastado, com a testa reluzindo, espelho ao sol. Assim como seus irmãos Aldemaro, Bedochi e Giannino, todos violinistas da Itália.


Por mais que eu tenha encontrado motivos para não entrar em depressão, justificativas para me assumir, eu percebi que me encontrava destelhado subitamente. Diante da televisão, num dia normal depois do serviço, cocei a cabeça de maneira despretensiosa e verifiquei enormes entradas, verdadeiras pistas de aeroporto.


Saí do meu conforto para conversar com minha mulher. Uma conversa séria, difícil, espinhosa. Demorei a iniciar, gaguejei, como quem vai revelar uma doença letal.


- Ana, estou sem cabelo... Você está casada com um careca.


- E daí?, ela respondeu, com alegre indiferença.


Achei que não entendeu a gravidade da situação e repeti:


- Você está casada com um careca, é propaganda enganosa, pode me devolver.


- Que nada, disse.


Ela se aproximou de mim. Tentei recuar, não adiantou. Seu passo era determinado. Subiu o pescoço e beijou minha testa, justo na área extinta.


- É melhor assim, eu tenho mais rosto para beijar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário