quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/20/2004 07:40:36 AM

O ESTADO DE S.PAULO, CADERNO 2, COLUNA DE DANIEL PIZA

Domingo, 19 de Dezembro de 2004



DESTAQUES E DECEPÇÕES DO ANO


Daniel Piza

E-mail: dpiza@estado.com.br

Site: www.danielpiza.com.br



No final de 2003 escrevi um texto examinando o bom ano da ficção brasileira, que entre outros teve Budapeste, de Chico Buarque, e Mongólia, de Bernardo Carvalho. Neste ano não houve nada equivalente. Mas, em compensação, a poesia deu as graças com Cinco Marias, de Fabrício Carpinejar, um autor na linhagem de João Cabral e Ferreira Gullar e com uma maneira própria de combinar imagens e idéias ("fanologopéia", diria o crítico e poeta Ezra Pound). E nenhum desânimo quanto à ficção faz sentido porque 2005 promete com o novo romance de Milton Hatoum, os testes de amadurecimento de jovens revelações como João Paulo Cuenca e os testes de vitalidade de veteranos como Rubem Fonseca. Também Carpinejar vem com poemas recentes em Como no Céu/ Livro de Visitas.


Já a não-ficção continuou bem em 2004, com livros de história como os de Elio Gaspari e os de crítica como o de Willi Bolle sobre Guimarães Rosa (com algumas ilações forçadas, mas mostrando como Grande Sertão: Veredas embute uma visão crítica do Brasil), o de Luiz Tatit sobre O Século da Canção e o de Tatit, Lorenzo Mamm\ e Arthur Nestrovski sobre Tom Jobim, além do Sem Receita de José Miguel Wisnik. Mesmo a ciência passa a ter seus divulgadores locais, como Ivan Izquierdo (A Arte de Esquecer), neurologista argentino radicado no Brasil. São todos intelectuais que cumprem sua função primordial: lançar idéias controversas na vida pública.


Outro saudável hábito em retomada no mercado brasileiro é o das reedições. Desde autores consagrados, como Oswald de Andrade, Erico Verissimo e Cecília Meireles (cujo Romanceiro da Inconfidência, belamente ilustrado por Renina Katz, ganhou volume de luxo da Imprensa Oficial), passando por "clássicos esquecidos" como os da coleção da Planeta (que começou com o dostoievskiano Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto), até críticos como Moniz Vianna e Antonio Candido, escapa-se do imediatismo das redes de livrarias. Isso tem ocorrido também com autores estrangeiros, de Dostoievski e Stendhal a Henry Miller e Philip Roth (o divertidíssimo Complexo de Portnoy), passando por T.S. Eliot (suas Obras Completas, ainda que o ideal seja ler no original). Alguns ganharam novas traduções; além disso, uma nova geração de tradutores de idiomas como o árabe e o japonês vem fazendo belo trabalho.


Também a crítica e o ensaísmo começam a receber mais versões no Brasil. São autores como Giulio Carlo Argan (Imagem e Persuasão), que mostra como a teatralidade da arte moderna vem do barroco, mas sem as promessas de transcendência do barroco; e Charles Rosen (Poetas Românticos, Críticos e Outros Loucos), que mostra o caráter crítico da música e da poesia romântica, o que também influenciou o modernismo. Outro filão nutritivo neste ano foi o dos livros que refletem sobre o mundo depois do 11 de setembro de 2001, como as reportagens de Seymour Hersh, os desenhos de Art Spiegelman e a ficção de Philip Roth, entre outros. Livros de história em geral, como The First World War, de Lew Strachan, versão compacta de sua trilogia que já nasceu clássica, e biografias como a de Stalin por Volkogonov, estão em alta.


Os de ciência, também. O Que nos Faz Humanos, de Matt Ridley, é o livro mais inteligente lançado neste ano no Brasil, por derrubar visões simplistas como a de que os genes são uma carga estática que ou definiu todo o comportamento ou pouco influi diante do ambiente. E The Ancestor's Tale, de Richard Dawkins, é um "tour de force" muito bem escrito, capaz de nos fazer ler com prazer sobre as espécies de anêmonas. Um ano que deu pelo menos dois livros bons por mês não pode ter sido um ano ruim.


CADERNOS DO CINEMA


No cinema brasileiro o ano foi pior do que na ficção. O melhor filme brasileiro, e mesmo assim com o defeito da grandiloqüência do terço final, não é brasileiro: Diários de Motocicleta, de Walter Salles; o diretor é brasileiro, mas o elenco fala em espanhol e o dinheiro não fala português. Se há uma razão para a perda de bilheteria do cinema nacional no ano, é a carência de filmes de qualidade, não de leis de proteção. Já os documentários mantêm o padrão, com Entreatos, de João Moreira Salles, e Peões, de Eduardo Coutinho; pelo banquete visual, Pelé Eterno.


O cinema estrangeiro também não foi mais que mediano. Hollywood insiste nos épicos edificantes - aparentemente, mais um subproduto do 11/9. Não que filmes como A Vila e Colateral não sejam bem dirigidos. Mas Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de Michael Gondry e Charlie Kaufmann, é muito mais criativo, inteligente e emocionante. E pelo menos Quentin Tarantino, com os dois "volumes" de Kill Bill, tem amor pelo cinema como folia de som, imagem e diálogo. Má Educação, de Almodóvar, não é seu melhor filme; mais uma vez, porém, está em outro patamar de sensibilidade.


Fui, com minha filha de 7 anos, Letícia, ver Os Incríveis, da Pixar, novo fenômeno da animação. É muito engraçado até a metade, com as crises de um herói que não pode usar seus poderes por causa da "conspiração da mediocridade" e personagens como a estilista que faz suas roupas; depois entra no ritmo frenético e no esquema Super Amigos. Não é tão bom quanto Procurando Nemo. Mas a Letícia adorou.


DE LA MUSIQUE


Já a música jamais nos abandona. Ter visto ao vivo o embate nada egocêntrico de virtuoses realizado por Yamandú Costa, Armandinho e Paulo Moura, no Teatro Cultura Artística, foi um privilégio. E Brad Mehldau no Tim Festival. E Ibrahim Ferrer com sua banda desbundante no Via Funchal. E o concerto de Nelson Freire com Martha Argerich na Sala São Paulo. Isso para não falar no novo balé do Corpo, Lecuona, com canções cubanas, estilo renovado e, ao mesmo tempo, o humor anguloso das coreografias de Rodrigo Pederneiras.


Os CDs não ficam atrás. A música instrumental brasileira continua deliciando com André Mehmari (Lachrimae) e Nicolas Krassik (Na Lapa). O relançamento de Elis & Tom apagou todas as canções nacionais lançadas no ano. Bebo & Cigala juntou flamenco e música cubana e ainda, de sobremesa, a MPB. E Diana Krall voltou para provar que grande cancionista é seu novo marido, Elvis Costello.


Por falar nisso, a constelação de jovens cantoras & compositoras continua brilhando. Estou escutando neste momento Careless Love, de Madeleine Peyroux, uma herdeira de Mabel Mercer, Billie Holiday e Nana Mouskouri que - como Mehldau, Costello, Diana Krall ou Mehmari - pertence a uma geração que não faz distinção de gêneros. A gente gosta mesmo é de uma bela canção, com boa letra, boa melodia e ótimo entrelaçamento entre ambas. Peyroux canta blues (Hank Williams), Bob Dylan, "chanson" (Vincent Scotto) e suas próprias canções. A abertura é com Dance me to the End of Love, swingada composição do grande Leonard Cohen, que acaba de lançar Dear Heather, outro CD indispensável. "Vinhos, mulheres e canções", já dizia a valsa, são o tempero da vida.


A ARTE DE EXPOR


Exposições e mostras bem montadas, com boa seleção de obras, aparato informativo e elegância no marketing, são cada vez mais comuns no Brasil. Modernismo brasileiro, dadaísmo, manuscritos do Mar Morto - os temas são diversos. No momento São Paulo pode ver também Antoni Tàpies no Centro Cultural Banco do Brasil, a arte brasileira dos anos 50 no MAM, os vídeos e fotos de Miguel Rio Branco na galeria Milan Antonio. Do Rio, estou ansioso pela vinda de Antes, mostra da arqueologia brasileira. E em Brumadinho (MG) o Caci é um museu inovador e traz o melhor da arte contemporânea.


Outra tendência é a arte de expor argumentos, como se tem visto em cursos, seminários e festivais pelo Brasil. Na Flip, em Paraty, estiveram Ian McEwan, Paul Auster e Martin Amis, além de Chico Buarque. Timaço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário