quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/8/2004 09:36:05 AM

OS ANJOS SOLTOS

Gravura de Marc Chagall


Fabrício Carpinejar





Sempre há um anjo. Um anjo doméstico, à paisana, solto, sem nada que o diferencie a não ser os ombros largos, como um banco de pedra em um jardim. Na sessão de autógrafos de 'Cinco Marias' na Feira do Livro de Porto Alegre, na tarde de sábado (6/11), uma senhora lembrava minha nona. A nona e seu tanque que servia de cesta aos figos, onde eu lavava os pés com o cheiro doce da carne das frutas. Ela esperava sua vez, atrás como estivesse em minha frente. Uma mensageira. Não a conhecia, apesar da intimidade dos seus traços, os olhos de desenho debruçado, feitos com o toco de um lápis. Tinha 82 anos, fui saber depois, de nome Zilah. Ela não enxergava direito. Veio sozinha em sua lentidão amorosa. Suportou a fila sem reclamar, com o livro em punho, agarrado como um terço. Ela só se deu por satisfeita quando eu a abracei. Questionou indecisa: 'É o Carpinejar? É o Carpinejar?', balbuciando os braços, moinho que começava a girar as águas mais subterrâneas. Apertou-me tão firme que me vi sozinho na capela de seu vestido negro. Sumiu a balbúrdia, o vozerio vizinho. Ouvi seu sangue, rio que se antecipa no vento das árvores. O vitral acima, filho de seu sopro quente. Ela me amava mais do que poderia escrever. Falou em meus ouvidos: 'que Deus te cuide até contra o próprio Deus'. E me entregou um presente, com o papel amassado de quem fez às pressas o embrulho. Ali, numa mesa, recebi uma bíblia em forma de chaveiro. O bico do pássaro é a chave. E a caneta esqueceu definitivamente o meu nome.

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