quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/4/2006 06:18:19 PM

NA RECEPÇÃO DA POUSADA

Pintura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Esperava o motorista para me levar ao aeroporto de Confins. Apesar das largas paredes e muralhas, Ouro Preto não faz silêncio. Galos desregulados soltam uivos querendo acordar todo mundo. Malditos galos! Quais foram os lobos que os ensinaram a uivar, a enganar que o sol está próximo?


Quatro horas da manhã e o recepcionista do hotel combate comigo o sono, em secreta aliança. Um pouco por curiosidade, um outro tanto por obrigação. Ele me trata com zelo exagerado, reconhecendo-me como mais um fantasma de seu turno insone até 6h.


Durante um tempo, permanecemos calados. Oferece um café, para pingar voz e leite na sala. Enxerga minha coleção de isqueiros no bolso. E ri. Um riso que se assemelha ao esgar de choro. Foi complicado discernir o choro do riso, mas logo ele se recompôs. Homenzarrão. Podia me carregar nos ombros como seu filho pelas ladeiras da cidade e não cansar.


Pergunto se é casado. Maldita pergunta! Poderia ter perguntado sobre seu time de futebol. Onde mora. O que gosta de fazer. O que ouve de música. De todas as realidades, escolhi justo sua mulher.


Agora ele ri. Agora defino: rir é seu soluço. Confessa que montou uma coleção de 283 óculos. Não falou 300. Não falou 250. Foi preciso na numeração. Duzentos e oitenta e três. Afora o que comprava, vários amigos encontravam peças extravagantes em diferentes estados e mandavam para ele. De camelô a lojas, vestia óculos. Lembrou de alguns, de oncinha, de hippie, de boiadeiro.


Adorava quando sua mulher pedia para tirá-los e enxergar seus olhos.


- Ela sempre brincava comigo, que era fácil confundir a verdade com os óculos.


Adorava quando sua mulher cismava que ele não teria coragem de sair com eles e o chamava de bagaceiro.


- Bagaceiro, eu?


Emoldurou grande parte dos óculos e cobriu sua casa com a coleção. O escritório povoado de quadros com sua fortuna de aros e lentes.


Mas isso o que falo é passado, ou uma dívida do passado. Jogou fora a coleção, como o resto de sua mobília. Ele está viúvo há um ano. Desculpa, ele está viúvo há 283 dias. Ficou me julgando severo, a exclamar:


- Que coincidência, que coincidência, que coincidência.


Tive pena de mim por não falar mais nada.


Pôs a perder a coleção porque não fazia sentido. Não fazia sentido juntar durante décadas o que ele não necessitava.


- Eu deveria ter colecionado os olhares de minha patroa.

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