quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/4/2004 09:12:45 AM

CHAPÉU DE RECADOS

Gravura de Van Gogh


Fabrício Carpinejar*





Podes me tirar tudo: o orgulho de ter nascido antes de mim, a arrogância de ter morrido depois de mim. Podes me tirar os livros, os meus preferidos perto da cama, as idéias que seriam geniais se não fosse o bom senso. Os suspensórios dos olhos. Podes me tirar a compreensão, o perdão, os ossos contados como dias nas paredes da carne. Podes me tirar a madressilva da porta, a porta, o meu jeito de comer. Podes me tirar o apartamento, o espaço da fala, as flores do túmulo. Podes me tirar o riso, a independência do riso, os conhecidos, as festas de corredor. Podes me tirar a memória e até o esquecimento. Podes me tirar o egoísmo e a paixão, a cultura que adquiri às pressas, a serenidade para julgar, a severidade do combate. Podes me tirar as metáforas, a fuga, minha saída do sangue. Podes me tirar o nome, o sobrenome, a neblina entre minha casa e a praça. Podes me tirar a alfabetização, o que escondi na infância e não achei de volta, o que escondi no amor e não pedi de volta, a própria volta. Podes me tirar a segunda chance, o voto de confiança, a remissão dos pecados. Podes me tirar os excessos do mínimo, o idioma, meu receio de ficar sozinho. Podes me tirar a anestesia, a dormência dos dentes, o telefone sem fio, a vigília do abajur. Podes me tirar as chaves, o caderno, o chapéu de recados. Podes me tirar o vício, o cigarro, a loucura amarrada nas patas de um corvo. Podes me tirar o colo, a sesta, a audição das escadas. Podes me tirar o desejo e pôr a inquietação em seu lugar. Podes me tirar os traços dos filhos, os hábitos de minha mulher, o respeito dos outros. Podes me tirar a liberdade que confundi com justiça porque nenhuma das duas se conheceu a tempo. Podes me tirar a esperança que embaracei na fé, a amizade dos cotovelos. Podes me tirar os instantes em que não vivi na rua, o apego ao quarto, a diferença. Podes me tirar a voz e a garganta da chuva. Podes me tirar a angústia, o tédio, as sobrancelhas divididas em três fatias de pão. Podes me tirar o consolo do medo, a confissão da manhã. Podes me tirar a genealogia, a geologia das falhas, os rins em vida, cortar minhas roupas. Podes me tirar as cordas do balanço, os gestos obscenos, o vento marinho. Podes me tirar a praia e a serra, o centro e a fogueira, a transparência da lua e as videiras do sol. Podes me tirar a tranqüilidade dos pés, os quadros, as formigas ruivas e o açúcar. Podes me tirar o trabalho, o certificado de dispensa militar, o CPF, o RG, as contas bancárias, denunciar-me por propaganda enganosa, por falsa identidade. Podes me tirar as possibilidades das mentiras, os anjos de jardim, os varais que cruzam os pátios. Não há castigo infinito. Não há dor infinita. Um dia a gente termina para começar, começa para terminar, refaz o percurso como se nada tivesse acontecido antes. Deixe-me apenas uma cadeira de palha, amarela, para olhar com piedade o que fui e me deslumbrar com as ruínas.

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