quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/17/2004 07:28:07 AM

DESENHOS DE UMA VOZ, BOCEJO DO POMAR, MURMÚRIOS DA ESTRADA

Gravura de Miró


Fabrício Carpinejar





Quem não desenhava ao falar no telefone ou contornava os cadernos escolares com rabiscos, figuras espirais e cabeças de elefante em corpo de esquilo? Estamos desenhando, de forma incessante, uma voz. A nossa voz, desde pequenos. Se o arbusto é amarelo e o sol é verde, não importa reproduzir a realidade, mas digeri-la e impor mudanças. Se estou numa reunião, sou acometido de uma febre infantil de preencher as bordas das folhas com arabescos. A única diferença é que não terei uma professora para legitimar o trabalho, dizer que é bonito e colar a folha ofício na parede da sala de aula com meu nome. Quando olho uma pintura, não procuro entender o que o quadro significa, procuro entender o pintor. O artista me interessa mais do que sua obra. O artista é a obra. Observo o quadro para encontrar a carne pensativa atrás da cor. Procuro descobrir o que ninguém conta: seus namoros frustados, expectativas, paixões, roupas, contas no fim do mês, carretéis em uma caixa de costura. Projeto no outro o que não sinto coragem de fazer. Falta um pouco de insanidade em minha vida, um pouco de desorganização, um pouco de imprudência, um pouco de inconseqüência, um pouco de desaforo. Sobra previsão, cautela e indiferença. Guardo as notas fiscais até do que não comprei. Guardo os amores que não tive. Guardo comida mais do que posso comer. Guardo as lembranças para não perder o fio da fome. Para que tanta proteção? Ao final, protejo-me de mim. Não é a minha caligrafia que vai me explicar, mas os desenhos que coloquei fora. As gravuras que não colori. O que fiz pensando não pensar. O que fiz sem pensar. A loucura não usa bengala - tropeça desacompanhada. Assim deve ser o traço. Todas as lembranças perecem, são ervas caminhadas, rosto lavado de manhã. Nada é inesquecível porque nem a memória gosta de ser a mesma, prefere mudar e desenhar o que não entende. Há pensamentos que não encontraram sua forma e ficam como vibrações, impulsos elétricos, vontades iletradas. Na vida temos páginas de água. Páginas de fogo. Páginas para viver e esquecer. Viver é esquecer alegremente. Não será o pai, a mãe, o marido, a esposa e os filhos que entenderão. Nem tudo precisa ser explicado para existir. Nem tudo precisa ser compreendido para existir. Página que fará espuma e só. Página que fará barulho de sol e só. Não se grava uma floresta, mas é possível conhecer uma árvore. A árvore de nosso timbre que é também o vento longe dela. A melhor escritura consiste em não domesticar a letra para sempre esforçar os olhos.

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