quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/11/2005 08:58:46 AM

AUTOBIOGRAFIA NÃO-AUTORIZADA


Fabrício Carpinejar





Minha biografia é um rascunho para romance. Não estarei nela. Quando pequeno, preservava uma caixinha de sapatos com bonecos de madeira, pequenas lascas de árvore em que desenhava rostos e afiava corda. Gastava um abajur riscando fósforos nas paredes dos bonecos. Minha faca não me ensinou a assobiar, cortava as lições pela metade. De dia, a irmã me mandava pastar; de noite, me mandava tomar banho para me lavar da sujeira que me mandou da primeira vez. Escrevia mais no tempo em que era analfabeto. A infância é mais um susto do que outra coisa. O que vi em meu bairro de guri matando gato e passarinho não tem cabimento. Juntava os passarinhos mortos do bueiro com a taquara de roupas e prepara enterro no pátio de casa. Acredito que o pátio de casa até já voou com tanto passarinho enterrado. Não mexia nos gatos. - fediam a sete mortes. Usava as meias pretas do pai como mortalhas. Ele não encontrava seus pares na gaveta e saía combinando meia marrom com preta. Era desajeitado demais para me sentir vivo. Uma das professoras advertiu a minha mãe que não iria completar os estudos, que não teria condições de ler, terra viciada em capim. Só tirava NS no ditado. No final do ano letivo, uma súbita mudança. Estalei para o verbo, a partir de jogos infantis com as letras que a mãe criou. O estalo foi de osso quebrado. Minha linguagem é manca. Como não consegui vencer meus inimigos, juntei-me a eles para rir de mim. Não levo tudo muito a sério porque não gosto de carregar nada. Recebi os mais implacáveis apelidos na infância, aceitava, ria e tocava a respiração adiante. Não me sentia humilhado. Me antecipava das piadas sobre minha feiúra e elas ficavam velhas nas bocas dos outros. Sinto uma timidez terrível. Mas sinto medo de ser tímido para não sofrer - é o que me faz não ser tímido. O medo de ser tímido é maior do que a timidez. Sou expansivo por falta de opções. Quando encontramos as legendas, demoramos mais para apagar as imagens. Terminei sendo um ponto e vírgula, não tenho coragem de terminar uma frase e muito menos certeza para começar outra. Eu apenas me interessava por fatos que ninguém conseguia explicar. A desistência da explicação é o início do poema. Ninguém mais se observa. Se observar com atenção alguém saberei mais dele do que ele próprio. Pouco conservo de mim, mas não me suporto de lado. Superei a fase de torcer pela minha desgraça. Houve um tempo em que rezava erros para contar com a desculpa de errar de novo. O elogio da desgraça é uma forma de vaidade. Fui vaidoso de infelicidade. Cada tragédia era bem-vinda. Eu me divertia com o sofrimento. Assim desfrutava de mais histórias para narrar. O problema da alegria: é muito lacônica, guarda o melhor para si. A tristeza é bem mais loquaz, reparte o pior com todos, escandalosa como uma tia míope, que andava sem calcinhas na hora de abraçar os sobrinhos. Não posso falar dela. Vibrava quando o ônibus vinha lotado. Podia me esfregar nas meninas sem me importar com a educação. Não me esqueço da menina que disse que ficou grávida de pé no ônibus. Depois disso, tomei cuidado até com a roleta. O mesmo aconteceu quando me informaram que o peixe tem uma bexiga natatória. Não mais comi peixe, pensando que ela nadava em seu mijo. É engraçado quando escuto que um casal se apaixonou pelo destino. O casal não fala que se separou pelo destino. Quem vai pelo destino volta por outra rua. Não há uma consciência em nós que sabe tudo, mas que ela mente, mente mais do que as verdades. Vou a um estádio de futebol para ficar sozinho. Alcançar objetivos me dá sono. Como deixar as camisinhas no bolso da calça e perceber ao estender as roupas. O que levamos do mundo não significa que conhecemos. Convenci-me de que era um gênio incompreendido, em seguida botei na cabeça que era um tolo incompreendido e, ao final, me satisfazia em ser apenas um tolo. Ao menos, venho me reduzindo ao essencial. Nunca tive dezoito anos - isso posso afirmar com segurança. A adolescência é morar ilegalmente no corpo. A realidade anda tão irreal que prefiro negá-la para não ser considerado louco. O pressentimento pesa. A impaciência me salvou de enlouquecer. Não esperei o final de minhas idéias para me concluir. A liberdade e a felicidade são antagônicas. Eu fui mais feliz preso a uma mulher do que longe dela. O mundo pode ser dividido entre os que concordam rápido e os que discordam igualmente rápido. Meu avô patenteou óculos para os ouvidos - morreu cego. Há sinais que queimam em segredo. Tinha uma namorada que reencontrei madura e não a reconheci. Eu sabia seu sobrenome pela pinta perto da boca. Ela tirou a pinta e não havia mais nada a conversar. Eu amava sua pinta mais do que sua boca. Ficou desdentada de pinta. Meu esquecimento não é um objeto de interpretação. Um dos cheiros que não quero perder é o do braço da avó. O cheiro de sua velhice. Figos em calda. Pele macia, como se não houvesse mais veia esticando o sangue. Cadeira de balanço não precisa de almofada, essa era minha vó. Não dependi de bigode para mostrar que cresci. Não fiz a crisma para não chegar tão rápido na extrema-unção. Emprego a sobriedade somente para pedir um café. Rumino o que as pessoas umedecem, como uma esponja. Humedecer é melhor do que umedecer, demora mais para secar. Ser o que não sou é também continuar sendo. Desejo ser mais boato do que notícia. O boato exagera, a notícia omite. Aquilo que uma mulher ou homem imaginaram também existiu. O que imaginamos também é biografia. Se eu não confesso um amor, não significa que ele não ocorreu, porque ele me fez existir. Não uso relógio. Relógio é perigoso por dentro, serve para montar explosivos, com peças miúdas cheias de contra-indicações. Estou atrasado se não encontro determinado passageiro ao meu lado no banco do metrô. Desisti de fumar na praia. Na verdade, apago o cigarro para o vento, que fuma o filtro sozinho e morre de câncer no pulmão antes de se tornar tempestade. Fui funcionário público e me cansei de fingir que trabalhava. Meu rosto virou uma praça sem brinquedos. Corto a vegetação alta a cada dois meses. Como asmático, me afogo quando não nado. A única saída de emergência ao poema continua sendo a morte, não a gaveta. Minha unha é marcador de página. Conheci gente que se excitava com uma mera lambida de seu cachorro, mas não dou nomes. Os girassóis se comovem cedo demais. Minha pureza ficou com as putas. Abro a janela do carro para me despentear dos dois lados. O beco é o cotovelo do bairro. Um bairro sem beco teve seu braço amputado e ficou com mão única. Eu me encosto para germinar ombros. As dunas não viram o mar. Excesso de luz dói mais do que excesso de escuro. Não renuncio de brincar mesmo quando estou trabalhando, pois a seriedade facilita angústia. Não há vagas nas horas. Quando morrer espero que seja tarde para morrer. Não preciso de fiador. Sei falir sozinho.


(Publicado na revista GV - Fundação Getúlio Vargas, encarte especial de cultura do Digestivo Cultural, dezembro de 2005)

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