quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/26/2005 10:34:21 AM

ESQUECIDOS AMIGOS

Gravura de Sigmar Polke


Fabrício Carpinejar





Ao reencontrar ao acaso um amigo antigo, do colégio, mas bem amigo mesmo, não tenho nada para falar. Eu e ele ficamos mudos, incômodos, quase que deixando logo o número do telefone para se despedir. Rezo para contar com a possibilidade de fingir distração e não o abraçar, de mudar de calçada e olhar para as vitrines, de atender o celular e me entreter. Frente a frente, o silêncio é constrangedor. O máximo que se sussurra é: "Tem visto o fulano? E o sicrano?".


Depois de revistar a turma inteira e descobrir que não enxergamos nenhum conhecido em comum nos últimos anos, somos obrigados a nos separar rapidamente. Somos obrigados a fugir e desaparecer, melhor dito. O ímpeto é mudar a rota no dia seguinte e riscar aquela rua do mapa da cidade.


"A gente se liga". Como pode a intimidade virar hostilidade? Me explica?


Um amigo que dividi as confidências, que servia como álibi para fugas e aventuras, não consegue entabular uma conversa que não seja de parada de ônibus ou de taxista. Um amigo fiel que fazia festa comigo, que jurou amizade por toda a vida, que segurou a fossa quando me separava das namoradas é convertido em um amnésico depois da colação de grau.


É regra de sobrevivência, o tempo esfria as relações, elimina os vestígios e os laços, muda as opiniões e as atitudes. Na verdade, trabalhamos para o tempo, não para a intimidade.


É mais fácil prosear longamente com um colega de trabalho, sem afinidades, do que com um amigo de infância e da adolescência. É mais fácil a superficialidade do aceno do que a sucção da profundidade. É mais fácil comentar amenidades e a novela do que transpor as barreiras das épocas. Até com desconhecido, a efusão é possível. Menos com os velhos amigos. A expectativa atormenta, o medo engasga.


Creio sinceramente que há um bloqueio para retomar a convivência. Nossa cultura ensina a trocar de cúmplices conforme o contexto. Existe uma facilidade para iniciar relacionamentos e uma dificuldade espinhosa de reviver fases. Pisa-se no pânico psicológico. Complicado atualizar o passado, mexer nas lembranças, nos sentimentos ainda irresolutos e perigosos de nossa formação.


Afora a vergonha implícita, o cara que pretendia ser médico não chegou a concluir a faculdade. O amigo antigo é uma espécie de fiador dos sonhos. O reencontro não deixa de ser uma cobrança do que se desejava ser e não se cumpriu. Algo como "vim aqui para ver se você saldou a promessa". Nota-se o medo de que segredos e detalhes inoportunos venham à tona, de que apelidos e escândalos sejam revividos, de que o lado jovem e inconseqüente troce das convicções atuais e conservadoras.


Não tenho idéia do que perguntar sem que soe como interrogatório policial: "Está casado? Tem filhos? Onde trabalha?" Já tentei fazer isso, mas as respostas do interlocutor são tão curtas que me falta imaginação para prosseguir. Tudo cheira à tolerância. O pior é quando o amigo está acompanhado. "Esta é a minha mulher", ele apresenta. Claro que deve ser a segunda ou a terceira e não quero cometer grosseira e sou mais genérico possível.


Ao reencontrar ao acaso um amigo antigo, sinto que não aprendi a ser leal.

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