quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/22/2006 04:25:28 PM

O MAPA

Para Sylvia


Fabrício Carpinejar





O escritório amarelo, os quadros alinhados e distribuídos com equilíbrio, as cores dos móveis evocando o miolo dos girassóis. A luz da lamparina aquecia a madeira entre o rústico e o preciso. Você sabe a casa em que é mais fácil encontrar um jogo de gamão do que um tabuleiro de xadrez? Pois é essa que estou falando.


Era uma casa de bom gosto, se não fosse um mapa rodoviário grudado na parede com durex. Um mapa com a confusão babélica das linhas viárias.


Não compreendia a utilidade de um mapa de botequim no apartamento de minha amiga de Brasília. Ela não viajava muito, não tinha nenhuma atividade geográfica em sua docência na universidade. Muito menos constava possuir uma obsessão por guias turísticos. Ou uma queda por arqueologia.


O mapa combinaria com um posto da polícia rodoviária, para a finalidade da receber perdidos e atender acidentes, não naquele lugar temperado de livros e relíquias pessoais.


A cartografia das estradas mostrava marcas hesitantes de caneta vermelha, datas enredadas em iniciais, círculos afobados, movimentos migratórios das mãos. Traçado infantil de adulto, que engana sua idade na letra, mas não nos desenhos.


Fiquei aguardando no sofá a amiga se arrumar para sairmos, até que tocou o telefone. Ela veio meio descabelada para o escritório e conseguiu atender no último toque. O último toque é sempre o que apanhamos com o fôlego cortado.


Começou a conversar de frente ao mapa e de costas para mim, o que agravou a curiosidade. Segurando o telefone no ombro, tomou uma caneta hidrocor na gaveta e passou a riscar cidades, a sobrevoar distâncias com a pressão do indicador. Enfrentou dificuldades para dar conta dos movimentos simultâneos: assinalar o pouso do dedo, decifrar os nomes microscópicos dos municípios e manter a ligação em um estado civilizatório de pergunta-resposta.


Ela falava com seu namorado do Rio de Janeiro. Um ator. Marcelo. Que partiria em uma nova excursão.


Neste momento, entendi, entendi entendi.


Ela reproduzia as andanças de Marcelo no mapa. Acompanhava seus avanços e recuos, esperando que ele ficasse tão próximo que pudessem se surpreender e matar as saudades. Faz seu roteiro, sem que ele saiba. Ajuda as veias a encontrar a saída mais próxima.


Quando ele falar o nome estranho de uma cidade visitada, ela já terá imaginado. Quando comentar que esteve em Manaus, já lembrará da estação.


Só o amor é capaz de ser tão patético e assim soar sublime. Tão ridículo e assim alcançar a verdade.


Só o amor é capaz de articular segredos sem denunciar a devoção, sem depender das recompensas.


Ela não colocou o mapa para esnobar o que está sentindo ou provar alguma coisa. Não me contou nada, descobri por acaso.


O mapa é o rascunho do corpo dele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário