quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/22/2004 11:23:56 AM

23/10


Fabrício Carpinejar





A alegria é uma vergonha. Não me entenda errado: a alegria é uma vergonha. A verdadeira alegria me deixa envergonhado, com apressado pudor. Aniversário é o dia que sinto vergonha, não a vergonha do arrependimento, mas a vergonha da insuficiência, vergonha da euforia da insuficiência. No momento em que a gente ama, é difícil não sentir timidez ao mostrar a nudez. Quem não tem vergonha não ama. Não é questão de deixar a luz do quarto acesa ou não, e sim de deixar o corpo aceso ou não. Um comedimento de se doar por inteiro, de se expor. Duvido daqueles que não sofrem do embaraço com o que ainda desconhecem do próprio corpo, das vontades da pele. O corpo é a voz ou a falta da voz? Faço 32 anos e não faço a idade, faço a lembrança da idade. Eu pensava que solidão era sentar nas pedras para espumar o mar. Solidão é ficar com os amigos enquanto o mar nos procura com sua faca de orvalho. Já morri muito e me obriguei a nascer mais do que morri para não endividar os filhos. Virei uma interrogação deitada de erva. Minhas mãos se alumiam como moedas. Com vaga-lumes e cigarras no jardim, a festa é perto. Eu fui criança tarde, adulto cedo. Aos 8 anos, minha mãe perdeu sua mãe. Voltava do enterro. Olhei bem firme para ela e disse: "alguém precisa cuidar de ti". Não me perguntei quantos anos tinha para ajudá-la. A coragem é sempre adulta (o medo é sempre infantil). Tirei suas roupas, botei a mãe na banheira. Dei banho com uma esponja amarela, a vesti e a botei na cama para dormir. Inventei de arrancar algumas hortaliças da horta para perfumar a água. Devo ter colocado inclusive urtiga, não sabia diferenciar os verdes dos olhos verdes. Era o pai de minha mãe porque mãe não é sol toda hora, às vezes é crepúsculo e depende de amparo para descer das árvores. "As flores exalam mais seu perfume quando estão tristes", foi o cartão que eu escrevi para ela. Todos os irmãos assinaram, a gente colou um passagem de ônibus para que ela fosse passear bonita. Não quero sacrificar a generosidade natural de viver, que não é minha, que é comum, que é acordar somente quando se olha a primeira pessoa na rua. Viver não é continuar, viver é começar. A possibilidade de amadurecer (não de mudar) a si nos outros e de amadurecer (não de mudar) os outros em si. Alegria de abotoar uma camisa amornada de vento. Sem passar. Sem pensar o fogo. Meu aniversário é aniversário de casamento com Ana. A Ana é mais do que a mulher que amo, minha vida é dada através dela. Ela me deu minha vida. Não havia publicado nada. Não me revelava, me escondia. Minha tristeza era arrogante, ferina, me excluía. A literatura significava erudição quando a literatura está onde o desejo é analfabeto. Acreditava que por ter olhos caídos não seria capaz de rir. O que eu sou, o que posso ser, o que posso não ter sido, os Fabrícios que se anularam, que se encontraram, que desistiram, que se alcançaram amam ela. Até o que eu não vivi ama ela. Até o que não suporto em mim ama ela. Seus olhos fixos que se abaixam quando pretendem me convencer. Seus olhos fixos: eu beijo seus olhos como quem recolhe uvas do telhado, para recordar o que não existe. A diferença entre o inferno e o céu é que o inferno foi construído e o céu descoberto. Depois de uma vida juntos, não há como dizer que ela não me esperava em mim antes de me conhecer, que eu esperava nela antes de me acontecer. Somos duas esperas que puxaram conversa enquanto aguardavam Deus. A língua dos peixes é a mesma língua dos pássaros. A Ana me roubou para me devolver.

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