quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/15/2005 11:08:34 PM

Folha de São Paulo, Caderno Folhinha, 15/10/05


MINICONTO


FILHOTE-DE-CRUZ-CREDO

Pintura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Sou feio, feio de nascença, mais feio do que você possa desenhar. Não fiquei feio com o tempo, mas também o tempo não me deixou bonito. Meu nariz é indeciso, tem um desvio que não termina em ponta. É uma batata quente. Parece que apanhei em um briga. Apanhei ao nascer. Quando me olham, perguntam o que houve comigo? "Não houve nada, por quê?", replico. "É que teu nariz saiu do lugar", falam. Acho que meu nariz não gosta de ficar sentado no mesmo lugar no rosto. Deve ser isso: dói a coluna do nariz. Queria dizer que sou feio por um acidente e contar as histórias mais tristes do mundo, mas não teve acidente. Não cai da bacia, não tive nada que me deformasse. Sou assim: feio feio. Naturalmente feio.


Ser feio chama atenção. Às vezes mais do que gente bonita. Passa um feio e as crianças e os adultos ficam apontando: "Olha lá a cara dele". Ser feio é quase uma profissão. Qualquer um recebe apelidos. O feio recebe uma porção deles, tanto que poderia vir ao mundo sem nome que não sentiria falta. Acho um desperdício dar nome a um feio como eu, não vão chamá-lo desse jeito mesmo.


Fabrício Carpinejar é poeta, autor de "Como no céu/Livro de Visitas" (Bertrand Brasil) e do infantil "Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa" (Alaúde)

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