quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/12/2006 12:50:06 PM

TÁ ACABANDO!

Arte de Peter Blake


Fabrício Carpinejar





No momento de lavar o brim, transplantava moedas de uma calça a outra. As moedas não se desvalorizavam com as mudanças histéricas dos planos econômicos e do dinheiro. Eram numerosas fichas telefônicas, numa época distanciada do celular e onde o telefone fixo significava propriedade de família. Na década de 80, eu não chegava em casa sem contar os telefones públicos no caminho. Por uma questão de urgência e prevenção, se o primeiro não funcionasse, deveria conhecer qual o mais perto. O orelhão tinha a importância de parada de ônibus, de posto policial, de pronto-socorro. Mais do que lufadas de vento ou placa de rua, esquina precisava de uma cabine para ser valorizada.


Filas se formavam diante do telefone, em qualquer horário e chuva. Igual a comício-relâmpago. Igual disputa de caixa de mercado no final de semana. Cada ficha que caía produzia um barulho de descarga e acelerava a voz do interlocutor, receoso com o fim abrupto da conversa, de esquecer de dizer o necessário. Quantas declarações amorosas, pedidos de emprego, saudades de filhos não foram interrompidos com "fala rápido, não tenho mais ficha"? Ou o cara estava arrependido de seus erros e, quando se sentia pronto a pedir o perdão, a ligação silenciava. O "alô alô" desesperado dele era um modo de chorar, que sua mulher nunca escutaria.


O aparelho engolia a seco as aspirinas metálicas. O orelhão hipocondríaco tomava umas cem por dia e não morria. Agüentava a overdose de um dia inteiro até chegar o para-médico da companhia telefônica, que realizava a lavagem estomacal.


Eu conversava enrolando minhas pernas no poste. Como se o poste fosse uma perna feminina e calçasse salto-agulha. Ao ligar para uma colega, exigia o talento de disfarçar a pressa. Deixava a menina relatar minúcias de sua tarde, mesmo que restasse somente uma ficha e alguns minutos.


Abafava os soluços do telefone quando consumia os créditos. Jurava que quem estava no outro lado da linha comigo escutava a ficha tropeçando para dentro. Escondia o barulho de estômago falando repentinamente mais alto.


Fazia de conta que tinha todo o tempo do mundo para discorrer sobre frivolidades enquanto os que estavam atrás de mim faziam caretas de descontentamento e firmavam a solidariedade do resmungo. O orelhão era feito para dar recado, mas ninguém obedecia à regra de etiqueta. Impossível não contrariá-lo. De bom tom não olhar para trás, senão batia o arrependimento da tagarelice e da espera dos usuários. Colava, portanto, o rosto no disco e virava estátua.


Havia a paciência de ouvir as conversas alheias. Não foram uma ou duas vezes que mudei meu discurso depois de acompanhar depoimentos emocionados em minha frente. Iria ligar para terminar um namoro e, enquanto aguardava, via uma senhora sofrendo, balbuciando, insistindo para que ele voltasse. Alterava de pronto minha idéia e marcava um novo encontro.


O orelhão me botava a pensar antes de dizer. Sem ele, minha vida tem sido perigosamente precipitada.

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