Da série NINGUÉM É O MESMO, MESMO QUE SE REPITA
Gravura de Paul Klee
Fabrício Carpinejar
Eu me apago sozinho. Não me acendi, mas podes deixar, eu me apago sozinho. Minha vizinha se demora a pentear os cabelos. Ela é adolescente e vai sair. Acredita sinceramente na noite. Passou todo dia pensando na noite. Ela somente acordou para não dormir depois. O que fui em mim ainda será. Não fecho o ciclo, não bato a porta, permaneço acreditando na noite. A noite que me entreguei com toda fúria. Não sei se atingi o fundo ou fiquei com medo de chegar. Eu bebi o dobro do que minha voz permitia. Minha voz ficava aguada. Eu fumava enlouquecido porque outros fumavam e outros resmungavam brasas e a roupa terminava cinza encadernada, cinza enfurecida, cinza queimando os dedos. Voltava sozinho para casa, com os bolsos cheios de papéis e guardanapos que não entendia e não passava a limpo, com telefones que prometi ligar no dia seguinte e não encontrei sentido e foram se despedindo antes mesmo de acontecer. Quantas vidas terminei sem antes começar? Quantas chances tive de ser diferente? Eu me consumi e não sei se sinceramente acreditava ou se era a noite que me fazia crer em noites. Eu me consumi e não me acabei. Eu quis me expulsar e me tranquei mais fundo. Ainda resta algo que não foi varrido, vasculhado, amansado. Nada soterra o tempo: cada vez mais recente quanto mais antigo. Olho para os filhos e não sei dizer o que queria dizer, não sei o que dizer, quando estou pensando tenho convicção que direi e, na hora de falar, estou de novo esvaziado. Eu precisava de tão pouca coisa e não me aceitei em troca. Não mudei o mundo apenas porque não sabia qual o mundo em que vivia. A noite tinha uma promessa que não era esperança, uma promessa que me fazia vivo, possível, insolente, insensato, inconseqüente. Ardendo vivo uma água-viva, árvore de água, escada de água. Plumas de água, espuma de escada. O vento amassava o pão da grama e eu pastava a céu aberto, patético como a relva em seu início, entontecido de uma umidade branda. Perdi amigos por tão pouco, por tão pouco julgava e condenava e não me absolvia. E como uma oração que se pressente, não dizia, não podia dizer com meus braços magros e ossudos, de imprevista simplicidade. E não me via inteiro, e sim aos sorvos e goles, falava o que queria, negava o que podia, afirmava o que não sentia e tudo era misturado o suficiente para não descobrir a origem. Perdi amigos, ganhei amigos, porém estive irremediavelmente isolado. Eu não me atingia. Nunca me alcancei. Seguro minha mão como a de um estranho. E houve desencanto, houve engano, disse que não mais faria, que era forte e que não precisava disso e refiz e fiz e voltei como quem nasce para ensaiar o grito. Como explicar minha risada súbita no meio de um jantar sério de negócios? Como explicar que debocho do que sou, mas com ternura? O deboche é minha maneira de falar que eu me entendo e isso não me basta. Que eu caminho como quem se escora em um ombro, que me escondo como quem caminha. Que nunca me salvei das noites onde não estive, que envelheci sem saber se a verdade traz beleza, se estava mesmo em mim ou se alguém perto me descreveu. Eu me apago sozinho. Não me acendi, mas podes deixar, eu me apago sozinho.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
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