SOPA DE FOLHAS
Da série NINGUÉM É O MESMO, MESMO QUE SE REPITA
Gravura de Maria Leal da Costa
Fabrício Carpinejar
Eu não espanto as formigas do açúcar. Levanto as colherinhas sem barulho, alarde, censura. Estou me acostumando a aceitar divergências, não ser extremista e pedir tudo o que eu não sou. Pureza é se permitir contágios. Eu não quero tudo, quero apenas conviver com as formigas no pote. Elas não eliminam o branco. São a inexistência perfeita de nossa existência. As formigas sabem mais da chuva do que eu. E eu não sei tanto do sol assim para retribuir. Dizem que a floresta vira carvão. O carvão é floresta guardada. Quando o carvão quer escrever, ele queima seus rascunhos. Ninguém nunca descobre se o carvão tem tempo de ler o que escreve. O carvão é uma espécie de formiga do fogo. Ele já foi árvore e não quis ser livro. Não ser livro é continuar sendo árvore. Mas uma árvore com asas. Uma árvore com asas é como um peixe sem escamas. Um peixe sem escamas é capaz de voar. Só não o faz para exercitar o invisível. Exercitar o invisível é fazer de conta que não se vê enquanto se está vendo. A distração é uma observação atenta. Quando pequeno, preparava sopa de folhas. Meus colegas falaram que era coisa de menina. Deixei de fazer sopa de folhas para fazer sopa de abelhas. Meus colegas então falaram que era coisa de menino. Trocando os ingredientes, mudava o sexo das coisas. Eu vejo Cíntia e Luiz Paulo como quem se busca na formiga, no carvão, na árvore e no que ainda não apareceu nessa história por timidez. Cíntia e Luiz Paulo atendem o telefone na mesma hora. E sempre há a dúvida sobre quem vai permanecer na linha. Um dia, os dois desligaram na mesma hora e vi navios. Nunca entrei no navio, posso imaginar que seja um livro boiando. Um livro boiando relê a página várias águas. Cíntia grita o que Luiz Paulo fica vermelho. Luiz Paulo grita o que Cíntia não fala. Cíntia tem cabelo roxo. A beterraba é roxa, mas beterraba é beterraba e o roxo do cabelo dela é como neblina em céu de Londres. Cíntia e Luiz Paulo não gostam de Londres, gostam de Praga. Praga é parecida com surpresa de abacaxi. Surpresa de abacaxi quem faz é o Luiz Paulo. Luiz Paulo mexe o pescoço com um gato na hora de pular de um telhado a outro. Só o pescoço, o rosto permanece dois passos atrás. Cíntia ri alto, tão alto que ela não escuta. Mostra a língua quando escuta uma piada. Anda com uma mochila aparentada de bolsa. Os dois completam 21 anos de casados. Com 21 anos, minha Ana terminava um namoro de três anos, já pressentindo que eu chegava. Com 21 anos, eu me terminava, já pressentindo que eu partira. Estou aqui por insistência, como quem fez a prova e a segura para mostrar que é calmo. Eu sou calmo de pressas acumuladas. Minha paciência não tem pátio. Cíntia e Luiz Paulo têm pátio e duas redes. Eles ruminam ficção como quem acende a floresta do carvão, preserva as formigas, voam ao lado de peixes sem escamas. Cíntia gosta de lençol novo. Hoje tem lençol novo. Para não ficar triste, amanhã também haverá lençol novo. Ela tira os óculos para as fotos. Os óculos estão brabos com ela porque nunca aparecem nos livros, mesmo depois de ajudá-la a fazer. Os óculos são dois meninos sonolentos. Cada um apresenta seu grau de dificuldade. O mundo usa apenas um sapato. Um sapato roxo como o cabelo da Cíntia. A música para Luiz Paulo é o cinema da Cíntia. Eles se buscam na madrugada para nunca duvidar que estão acordados. Abrem a casa para pregar vozes no lugar dos quadros. A formiga se finge de açúcar para não parecer viva. A formiga é doce. Ninguém come formigas para adivinhar os dentes. Ninguém come pinho sol, apesar disso, ouvi gente falando que gengibre é pinho sol. A árvore, antes de ser carvão, foi pedra. Pedra líquida. Pedra líquida é friso de mar, coice do rio. Um novelo de nervos se desmanchando aos poucos. O rio coça seus cotovelos com excesso de luz. A luz é uma cebola sem cheiro, mas faz chorar quando é muito forte. Luiz Paulo é elepê. Ele nasceu para não ter barba. Se ele tivesse barba, não seria Luiz Paulo. Barba é tripé de fotógrafo. LP persegue partituras. Cíntia sopra a palavra como um ninho de assobios. Palavra é para não ser vista. Palavra é a inexistência perfeita de nossa existência. Ela não assobia para chamar alguém. Faz gestos largos de mão dupla. Se o braço esquerdo vai, o direito volta. Eu não lembro como comecei a amizade com eles. Quando a gente não lembra do começo, não há fim. Posso contar a história sem estragar o final. Amar é não fixar enredo. Amar é desenredar um verso, um carvão, uma formiga e até um peixe sem escamas.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
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