quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/30/2005 09:06:52 AM

Jornal Zero Hora, Segundo Caderno

Porto Alegre (RS), 30/5/05, Edição nº 14525




OS SEIOS DE CLARISSA NO AQUÁRIO

Da série "Erico e os escritores"


FABRÍCIO CARPINEJAR





Fácil analisar o primeiro livro de Erico Verissimo antes de Erico, mas tudo se complica quando se examina esse primeiro livro depois de Erico. Será que ele sobrevive a si mesmo? Clarissa prova que sim, e representa a capacidade única e lapidar do escritor de universalizar a linguagem. Alçou um patamar popular, sem perder a exigência e as dificuldades de um clássico. Pode ser aplicado no Ensino Fundamental ou na universidade, pode servir como batismo na escada escolar (Monteiro Lobato - Erico Verissimo - Machado de Assis) ou enfrentar a extrema-unção de leitura em idade avançada.


Erico Verissimo foi uma parabólica, a transmitir vários canais estilísticos (político, satírico, psicológico e épico) ao mesmo tempo, em uma época que só se escrevia de um jeito. Clarissa, sua narrativa longa de estréia (1933), corria risco de ser apenas um dado histórico na biografia. Ou um romance de formação, a história de uma moça do interior, prestes a completar 14 anos, descobrindo o prisma adulto da capital e do seu corpo. Antes de tudo, significa a formação do romance de Verissimo e de sua gigantesca metáfora do Brasil. A pré-adolescente é a câmera escolhida pelo autor para narrar a tensão e os conflitos ideológicos de uma pensão, onde Clarissa está morando enquanto estuda.


A partir de uma temática despretensiosa, o crescimento de uma menina, Erico Verissimo cutuca as feridas e os atavismos sociais. Utiliza a inocência da personagem para não tomar partido, mas partir o homem em bocados de desilusão. Elabora uma poética descritiva, altamente cuidadosa com a linguagem: "Ela tem a impressão de que a sua imagem penetrou na vitrina, vaga e apagada como um fantasma, e como o aquário lhe fica à altura do peito, parece que o peixinho nada ao redor de seus seios". O erotismo incipiente da protagonista se mistura às expectativas exageradas de vida. Clarissa vai desvelando a complexidade das relações afetivas aos solavancos. Traduz seus pensamentos, para entender o que acreditava e o que deve deixar de acreditar. Acreditava que as cegonhas tinham um papel proeminente na procriação. É comovente seu esforço de racionalizar e converter as figuras de linguagem, os pés-de-galinha ou os rabos-de-galo, por exemplo, em alguma conexão com a realidade do galinheiro.


Clarissa é o esboço das mulheres fortes que viriam a aparecer e comandar a visão de mundo de Erico. Mulheres que desafiam a mentalidade de uma sociedade patriarcal com doçura e persistência. Melhor, com a persistência da doçura. É mãe espiritual de Olívia, de Olhai os lírios do campo (1938), e de Ana Terra e Bibiana, de O continente. Uma jovem precursora.


* Poeta e jornalista, autor de Como no céu/Livro de visitas


Clarissa (1933)

Clarissa é uma jovem interiorana morando em uma pensão em Porto Alegre e enfrentando o estranhamento da cidade grande.


O que já se disse:

"Eu queria (como Clarice Lispector diria anos depois, referindo-se às Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato) um livro para se viver dentro dele". Caio Fernando Abreu

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