quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/25/2005 07:39:33 PM

INVOLUNTÁRIO

Gravura de Escher


Fabrício Carpinejar





Sou mais engraçado quando banco o sério. Quando faço graça, sou tedioso. Minhas piadas não são piadas. Acontecem por acidente. Ou melhor, acontecem pelo acidente. Caio, me estatelo e o mundo ri. Não posso chorar porque os passantes vão rir ainda mais. Fadado a ser exagerado tentando evitar a queda. Deveria me conformar e cair com entusiasmo, não opor resistência. Mas me esforço em prevenir o pior e me proteger e me machuco o dobro. Minha escola era pródiga de escadarias. Corria atrasado e escorregava em minha ânsia de subir. Meninas riam com as mãos na boca. Meninos soltavam gaitadas mostrando o ferro dos dentes. Provocava risadas ao me machucar. Não provocava risadas ao me sentir bem. Criei platéias involuntárias. Não assisto meu desespero. Me envergonho e procuro um canto onde não sou conhecido. No meu corpo, por exemplo. Sorvia as merendas isolado, no banco de pedra, distante do alarido. Desembrulhava o pão e me inclinava a ele, como quem sofre de visão. Como quem precisa ler colado à folha. O pão não ia a minha boca, não se levantava. Eu tive sempre que ir até o pão. O pão e sua cadeira de rodas. O pão é mais pesado para quem não o cumprimenta. Transformei-me na garrafa térmica. Dentro, o leite e o desespero quentes. Fora, a cor azul pacificada.


Não entendo as piadas em minha língua. Meu senso de humor nasceu na Inglaterra. Minha risada fala inglês, apesar de nunca conversar em inglês. Há risadas que falam alemão; outras, chinês. Basta desenhar com gravador quem ri. Raros são os que estão rindo em seu idioma. A risada é uma pronúncia diversa, com barulhos estranhos, inimagináveis, produzindo cócegas no osso. Diferentes das vozes de seus donos. Há a risada muda, em que o som está engarrafado e demora para descer. Há uns dez segundos de suspense e de asma antes do estrépito. Nem é uma risada, é um espirro incompleto. Há risadas forçadas, abrindo latas. Risadas que descem lomba e não voltam. Risadas com espinho. Risadas de oliveiras, doces. Risadas de calhas, acumuladas. Risadas de ventilador, girando. Risadas comprimidas, de reprimidos. Risadas histéricas, de hienas. Risadas nostálgicas, de marulho. Risadas de fotos, induzidas. Risadas alérgicas, de luz intrusa. Risadas confusas, que cospem abelhas. Risadas nervosas, de separação. Risadas ácidas, de limão na mesa. Risadas compreensivas, com os cabelos penteados.


Não se escuta a própria risada, como acontece com o ronco. Acho que perdi minha risada quando vi sapos em frascos no museu de história natural. Ou fetos em exposição na sala de biologia da escola. Como pode o homem zombar do que não nasceu? Como pode a mãe deixar sua possibilidade de filho em um pote de conserva? Como pode o pai não abrir essa lata? Amigos mexiam nos frascos, sacudindo a criança no aquário de formol. Não eram peixes, mas escutava risadas coloridas, escamadas. A turma não se desesperava, mas permanecia excitada com a descoberta, em puxar o braço do boneco, excitada com a morte doméstica, de coleira e casa marinha. Dedos apontavam o que seriam os olhos, o que seria o queixo da criança, o que seria do que seria do que seria. Risadas fúnebres, de estertor. Queria soltar o bicho, soltar o próprio homem dentro do bicho. O bicho que o homem se torna quando não é enterrado. O bicho que o homem se torna quando não é velado. O bicho sem pouso. Nem toda sombra é calma.


Corria para o recreio a me acalmar. Havia pombas. Risadas de cisco, de susto. Colegas espalhavam restos de bolo para elas. Eu já espalhava aves para a comida. As janelas receberam grades porque andavam fugindo de mansinho. Gente respondia a chamada e as cortinas voavam. A sala terminava com dez alunos da linha da frente enquanto havia quarenta nomes na lista de chamada. Não cabulei as aulas, permaneci encabulado. A professora lia a relação de alunos com sobrenome. Levantava apenas o dedo. Estar presente era pedir demais.


O auditório do colégio transmitia documentários de escolas da banda oriental alemã da década de 60. Vinte anos atrasado, sem tradução. No escuro do audiovisual, toquei sem querer nas coxas de uma menina e passei a confiar em duendes. Confundia as coisas e dizia que uma pessoa ficava duende, não doente. Pois qualquer doente diminuía de tamanho com febre e assumia colorações verdes. Demorei um tempo para acertar as letras. Tropecei nos números romanos. O que não vi é mais caro. Não posso ir embora de minha vida, sem a certeza de ter entrado. Bate a esperança de chegar.


(Da minha coluna na revista Idéias, edição de maio de 2005, da Travessa dos Editores)

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