quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/22/2005 09:39:18 PM

Revista Época, Edição 366 - 23/05/05


POESIA


LAÇOS DE FAMÍLIA

Carlos Nejar, Maria Carpi e Carpinejar têm estilos diferentes, mas biografias que se tocam


Federico Mengozzi




Nejar, Maria e o filho poeta


O pai, Carlos Nejar: E o tempo parou à porta./E a alva entrou no meu corpo/E meu corpo entrou na alva. A mãe, Maria Carpi: Eu não sou o erguido,/mas o madeiro e o tormento./Eu não sou o descido,/mas a mortalha e o desfazimento. O filho, Carpinejar: Tenho dificuldades/para cumprir o que me prometi./Não há ninguém para cobrar.


Pai, mãe e filho contaminados pela poesia, ou pelo sentimento poético do mundo. Pode parecer pouco, mas existem, se houver, raros exemplos de uma trindade assim, ontem ou hoje, em qualquer literatura. Três poetas em diferentes estágios da carreira, mas todos reconhecidos e produzindo. Carlos Nejar, gaúcho de Porto Alegre, procurador de justiça aposentado, membro da Academia Brasileira de Letras, morador em Guarapari, Espírito Santo, lançou recentemente Tratado de Bom Governo, poema em tercetos que evoca a pintura do pré-renascentista Simone Martini e faz, à maneira de Dante, um painel da condição humana. Maria Carpi, gaúcha de Guaporé, moradora em Porto Alegre, advogada e mãe de quatro filhos - Carpinejar é o terceiro -, começou a publicar tardiamente e logo recuperou o tempo perdido. As Sombras da Vinha é uma metáfora que, por meio do ciclo da vinha, dos parreirais despidos à brotação dos frutos, espelha o amor e a vida.








GAÚCHOS Carlos Nejar, Maria Carpi e Carpinejar, três vozes poéticas distintas, estão com novos livros de poesia na praça



Fabrício Carpi Nejar, o Carpinejar, filho de ambos, gaúcho de Caxias do Sul, é, aos 32 anos, uma das vozes mais festejadas da poesia brasileira contemporânea. Ele mora em São Leopoldo, apresenta um programa na TV, conduz debates em livrarias, ministra oficinas de literatura, dá palestras no interior do Estado. E escreve livros como os recém-lançados Como no Céu e Livro de Visitas, agrupados num só volume. Ele diz que o primeiro pode ser lido como um livro "católico", da frente para trás, enquanto o segundo, como um livro "judaico", de trás para a frente. Bem-humorado, Carpinejar diz que, ao contrário do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, é contra o nepotismo. Mas adverte que poesia não é cargo de confiança. "É confiança."


"Como filho", diz Carpinejar, "admiro meus pais. Como leitor, admiro os escritores. Temos estilos diferentes. Carregarei eternamente os dois em meu nome. Foi o jeito que o menino encontrou no adulto para vencer o divórcio dos pais quando tinha 8 anos. Afinal, (Maria) Carpi e (Carlos) Nejar estarão casados em mim, no nome Carpinejar, para sempre. Não é isso que toda criança deseja?" A mãe não se surpreende com o filho poeta, pois o alfabetizou com poesia. "Ele sempre foi um menino sensível e muito observador", lembra. "E a sensibilidade, quando cultivada, abre caminhos." O pai revela alegria igual. "Desde menino, mostrou inclinação poética. Um dia me disse: 'Pai, a casa do céu é a casa dos pássaros'. A poesia o descobriu. Fico contente com o fato de vê-lo caminhar com seus sapatos longos de poemas. Ele tem dicção própria."


Não fui o primogênito/para ser um segundo pai./Não fui o caçula/para tomar as dores da mãe./Sou o filho incerto, do meio/e do canto da mesa. Versos em que Carpinejar se situa no contexto familiar. Ele diz que não era para ser o "poeta" entre os irmãos, já que tinha pouca aptidão para o verbo. "Tive sérias dificuldades de alfabetização, falava errado, trocava as letras", confidencia. "Sou filho de minhas dificuldades. A insuficiência, o isolamento e o medo me fizeram entender que não estou sozinho. Em vez de procurar ajuda, fui ajudar a quem se sentia deslocado do mundo como eu. Não escrevo para fugir de mim, mas para me encontrar nos outros. Todo o caminho é pessoal, meus pais me ajudaram como filho, não como escritor."


Para Nejar, Tratado de Bom Governo conta, mais do que canta, as perplexidades de nosso tempo. "Falei dos mortos, alegoricamente, para tratar dos vivos." Para Maria Carpi, a metáfora da viticultura, contida em As Sombras da Vinha, é esplêndida. "Não só a vinha e sua cultura é uma metáfora da vida, como todas as metáforas são uma transposição da vida para outro plano." Para Carpinejar, Como no Céu é seu fim de semana, enquanto Livro de Visitas são seus dias úteis. "Um depende da memória do outro. São livros de amor, sem confessionalismo ou exagero. Não há idealização." A poesia brasileira agradece. Em nome do pai, da mãe e do filho. Amém.





TÍTULO

Como no Céu e Livro de Visitas

AUTOR

Carpinejar

EDITORA

Bertrand Brasil

PREÇO E PÁGINAS

R$ 29/224


Poemas dos livros Como no Céu e Livro de Visitas, de Carpinejar


COMO NO CÉU


Pág 77


Corrias entre lápides e ciprestes,

derrubando bules e flores.

O cemitério foi teu terreno baldio,

tua casinha na árvore.

Investigava os dizeres

dos velhos túmulos,

Interessada nas inscrições

como anúncios de emprego.


Deitava as bonecas nas camas de pedra.

Preparava chá e bolachas de folhas.

Dessa lembrança

decorre a tua indecisão

de escolher o epípeto

e os nomes das filhas.


Págs 115 a 120


Eu isolo os cabelos; ela ajeita as mechas negras;

eu sou verde, ela azul;

eu tenho o nariz de um dobrão espanhol,

ela alegra as frutas;

eu tenho os olhos renascentistas,

ela um olhar impressionista;

eu ando nos cantos dos caminhos,

ela solta os caminhos sem perceber;

eu me arrisco na arrebentação;

ela espera a visita do mar;

eu sou da meia-noite,

ela é do meio-dia;

minhas mãos são menores do que as dela,

suas mãos alcançam a chuva;

eu deito no lado esquerdo,

ela amplia o direito;

eu durmo de tevê acesa,

ela sonha com o rádio ligado;

eu esqueço moedas e passagens nos bolsos,

ela recolhe o resumo da roupa na máquina;

eu uso o telefone como orelha da porta,

ela é a chamada a cobrar;

quando distraído, eu faço poesia atenta,

quando atenta, ela faz poesia distraída;

eu tenho pés chatos e piso em falso,

ela enxerga duplo e aprecia em dobro;

eu danço fora da música,

ela dança com a música de dentro;

eu não sei fazer churrasco,

ela faz de conta que não precisa;

eu faço as contas,

ela enrola o terço na cama para dar sorte;

eu tomo café forte,

ela mede a fumaça com a colher;

eu chamo seu pai para consertar o chuveiro,

ela chama minha mãe para me confundir;

eu sou redundância,

ela é o eufemismo,

eu não uso aspas,

ela usa chapéu na praia;

eu leio estirado como uma chama,

ela lê com as pernas dobradas;

eu compro o fútil, ela compra o necessário;

eu me perco em lugares abertos,

ela se perde em lugares fechados;

eu falo sem parar,

ela ouve sem dormir;

eu prefiro estacionar nas esquinas,

ela me centra;

eu compro jornal,

ela é quem lê;

eu escapo dos deveres,

ela paga guardador de carro;

eu me visto sem olhar,

ela corrige o que não vi;

ela não fica doente,

eu adoeço quando estou nervoso;

ela pensa em tudo,

eu penso o que não sobra;

eu extravio nomes,

ela extravia rostos;

eu não guardo telefones,

ela memoriza a lista;

eu não canto,

ela me legenda o som;

eu erro na pronúncia,

ela é vento simultâneo;

depois do prazer, fico com insônia,

depois do prazer, ela quer dormir;

eu tenho um porão de lembranças,

ela tem um sótão;

eu entro nas recordações pelos fundos,

ela entra pela frente;

eu me alumbro com a mentira,

ela se deslumbra com a verdade;

eu não me repito,

ela imita sotaques;

eu faço amigos rápido,

ela exige convivência;

eu compro as verduras que não prestam,

ela cansou de me ensinar;

eu não sei contar piadas,

ela não gosta de piada;

eu imagino, ela desabafa;

eu fico calmo na tristeza,

ela explode de raiva;

eu alimento pressentimentos,

ela confia em fatos;

ela pede desculpas,

eu continuo acusando;

eu peço desculpas,

ela já esqueceu;

eu sinto ciúmes de velhos amores,

ela sente ciúmes de novos amores;

eu vejo a dor como uma trégua,

ela observa a dor como uma lacuna;

eu me interesso pelo objeto quando o perco,

ela se interessa quando o reencontra;

eu sou obcecado,

ela é cautelosa;

eu sou perfeccionista,

ela é comovida;

eu improviso,

ela planeja;

eu fujo do aniversário,

ela ensaia o seu com antecedência;

eu puxo sua cadeira,

ela me seduz de lado;

eu sou uma cidade de baixo,

ela é a cidade vista de cima;

eu me vingo,

ela perdoa;

eu sou passional,

ela pacifica;

eu me hospedo quando ela viaja,

ela reside em minhas viagens;

eu acredito em Deus,

Deus acredita nela;

eu rezo ao sair de casa,

ela reza ao chegar;

eu escalo árvores,

ela rega relâmpagos;

nenhuma noite é como as outras,

as outras noites são dias inventados;

nossa risada se bate no escuro.


Pág 53


Minha mulher, teus olhos, teus óleos,

teu jeito de me abençoar com os seios.

Dá-me a estrada entre a cama e os teus joelhos.

Tuas pernas abertas em minhas pernas fechadas,

tuas pernas fechadas em minhas pernas abertas.

Não devolveremos o espaço que criamos,

não há retorno aos limites.

Tampouco poderei escrever sobre tua letra.


LIVRO DE VISITAS


Pág 77


Influenciável, tremendamente influenciável.

Tudo o que não foi dito me influencia.

Um homem secando o suor com lenço

me influencia.

Uma mulher catando os anéis das latas

me influencia.

Um cão seguindo o cavalo

me influencia.


Pág 33


O sedutor é indiferente.

Não eu, não consigo me livrar

do ímpeto de permanecer,

de me desculpar mesmo

quando não errei.


Pág 27


A lembrança mais remota é a mais alegre.

Andava menino nos varais baixos, as camisas molhadas

batendo em minha testa. O olfato da lã, os dedos do ar, o pomar

da lâmpada. Corria de um lado a outro, pulando as páginas,

mais roupa do que peso. Meus cabelos, o teto do fogo.

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